domingo, 13 de junho de 2010

Agudás.

O texto abaixo é uma reportagem da Revista Veja de 07/07/99 que vale a pena ser relida por ser muito interessante, além de esclarecedora, e que fala sobre os ex-escravos e os negros livres brasileiros que retornaram à África, e dos agudás, seus descendentes, conforme são conhecidos em Lagos e Porto-Novo.

A epopéia do retorno

Romance narra a aventura de escravos
que voltaram à África e enriqueceram
no comércio, na construção
e até no tráfico negreiro

Paulo Moreira Leite


Um romance muito especial retorna às livrarias – A Casa da Água, do diplomata Antonio Olinto. Escrito em 1969, relançado há pouco, o livro mereceu do crítico Wilson Martins a classificação de obra-prima. A Casa da Água é uma obra feliz também por fazer história pela literatura. Apresenta, no reino da ficção, uma epopéia que permanece desconhecida pela maioria dos brasileiros – a aventura dos escravos que deixaram o país para retornar à África, no século passado. No romance, a trama se concentra em três mulheres negras que embarcam num veleiro em Salvador para se estabelecer em Lagos, a então capital da Nigéria. Ali, constituem família, enriquecem, seus descendentes até participam das lutas pela independência. Tudo isso aconteceu na vida real. A diferença é de escala.

No decorrer do século passado, milhares de negros brasileiros atravessaram o Atlântico para residir no Continente Negro. Em Lagos eles formaram um bairro, o Brazilian Quarter. Em Porto Novo, no Benin, instituíram o Carnaval e o costume de comer bacalhau na Semana Santa, além de comemorar a festa do Nosso Senhor do Bonfim. Ainda foram para o Gabão e Gana. Muitos brasileiros enriqueceram a ponto de construir as grandes fortunas de seu tempo. O comerciante Domingos José Martins tornou-se um dos homens mais ricos da Nigéria no século XIX. Vivia em uma casa imensa, com quadros nas paredes, pátio com árvores de laranjeira e sala de visitas com caixas de música, a pré-vitrola da época.

No Togo, que proclamou a independência em 1960, o primeiro presidente da República, Sylvanus Olympio, era descendente em linha direta desses imigrantes. O Benin teve um ministro das Relações Exteriores, chamado Luís Inacio Pinto, que era neto de baianos. Um dos figurões atuais desse país paupérrimo se chama Karim da Silva. Comerciante, Karim é um senhor de bengala e chapeuzinho, que cultiva modos elegantes e automóveis de luxo, com uma frota de Rolls-Royce e Mercedes em sua garagem. Outro nome ilustre vem de uma árvore genealógica fundada por um mulato que se dedicava ao tráfico negreiro, Francisco de Souza, o "Xaxá" (veja quadro).

Uma primeira leva de retornados tomou o rumo da África depois de 1835, quando a Revolta dos Malês, em Salvador, produziu o temor de que no Brasil pudessse ocorrer uma rebelião como a dos negros no Haiti. Setecentos rebeldes foram deportados. Depois, outros negros partiram por conta própria. Nenhum proprietário mandava escravo embora, pois era um investimento caro. Mas o cativo que conseguia a alforria, seja pela compra da liberdade, seja como recompensa após décadas de bons e duros serviços, era pressionado a deixar o país. No mundo do século XIX, em que as idéias racistas ocupavam lugar central na organização das sociedades, nenhum governo considerava conveniente manter os negros dentro de suas fronteiras com o fim do cativeiro. Os Estados Unidos estimularam o retorno dos escravos a um país improvisado, a Libéria. No Brasil de Pedro II foram elaboradas leis que forçavam a saída dos negros. Os cativos podiam juntar dinheiro – mas eram proibidos de comprar bens de raiz, mesmo que fosse uma terra para trabalhar. Todo alforriado era convocado a se registrar na polícia, vivia sob vigilância e era obrigado a pagar um imposto exorbitante, não cobrado dos brancos. Convencido de que o retorno seria uma solução razoável num país que importava imigrantes europeus em grande escala, depois da proclamação da República o governo financiou a volta de milhares de negros.

Boa parte dos retornados não era a ralé da senzala, mas uma espécie de elite negra, que havia aprendido um ofício no Brasil. Artesãos que sabiam ganhar a vida, mesmo se obrigados a entregar seus rendimentos a um senhor. Chegaram à África como os primeiros sapateiros, ourives, mestres-de-obras e carpinteiros. Boas costureiras, as brasileiras levaram a moda européia para o continente. As cozinheiras conquistaram freguesia como banqueteiras. Mas o principal papel que os ex-escravos desempenharam foi no grande comércio. Num artigo dedicado ao assunto, Gilberto Freyre diz que eles foram os pioneiros do capitalismo na África. Sua presença, diz o professor, "marca significativo começo de burguesia capitalista africana em terras até então virgens de burguesismo e de capitalismo indígena".

Uma atividade a que os negros se dedicavam sem dor na consciência era o comércio de escravos, o que não espanta pelos olhares da época e do lugar. Grande mercadoria de exportação africana por três séculos, a captura e revenda de cativos em ações de guerra produziu milionários sem conta, brancos e negros. Na segunda metade do século XIX, quando o tráfico negreiro começou a declinar no comércio internacional, os comerciantes brasileiros mudaram de ramo, mas seguiram enriquecendo, levando produtos brasileiros para lá, trazendo produtos africanos para cá. Volumosa, a compra e venda com o Brasil era menor que a dos ingleses, mas maior que a dos franceses e só um pouco inferior à dos alemães.

De bolso cheio, os antigos escravos investiam até em atividades culturais. Em Lagos formou-se uma companhia teatral chamada Brazilian Dramatic Company. Quando a notícia do 13 de maio de 1888 chegou à África, os brasileiros organizaram festejos que duraram uma semana. Guardou-se uma foto da comissão responsável pelo evento. São elegantes homens de fraque, negro como sua pele. Os brasileiros levavam uma vantagem sobre os nativos. Eram os únicos cidadãos ocidentalizados num continente que começava a ser conquistado por Inglaterra, Bélgica, Alemanha e França. Eles acabaram recrutados, em boa quantidade, para os melhores empregos na administração colonial e para grandes casas comerciais européias. Outra diferença era a religião. Uma parcela dos que retornaram era formada por muçulmanos, mas a maioria chegou convertida ao catolicismo, e isso marcava. A identificação com essa religião era tão grande que, na língua ioruba, um mesmo termo, agudá, serve para designar brasileiro e católico.

Agora que o Brasil é uma lembrança dos avós que já morreram, o sinal permanente da presença brasileira na África se encontra na arquitetura. O sobrado criado pelo colonizador português na América saiu do Brasil e foi de navio para o Continente Negro, onde ficou de pé graças ao talento e à competência de construtores, mestres-de-obras e pedreiros brasileiros. Esses casarões de dois andares, de tijolo e cimento, eram novidade em um lugar onde a maioria das moradias era de barro ou de palha. Foram erguidos em toda parte. A mesma técnica de construção serviu para levantar edifícios públicos, catedrais e mesquitas. Como os brasileiros se tornaram símbolo de gente com dinheiro e prestígio, seus casarões viraram sinal automático de riqueza. Hoje, suas obras alimentam trabalhos acadêmicos. O arquiteto brasileiro Marianno Carneiro da Cunha e sua mulher, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, escreveram Da Senzala ao Sobrado – Arquitetura Brasileira na Nigéria e na República Popular do Benin, obra básica sobre o tema. O italiano Massimo Marafatto também fez um livro, inédito em língua portuguesa, intitulado Casas Nigerianas-Brasileiras.

O primeiro a estudar os afro-brasileiros foi Pierre Verger, antropólogo francês que adotou o Brasil como pátria e o candomblé como religião. Verger entrevistou e fotografou brasileiros na Nigéria, ainda nos anos 40. Diplomata com posto em Lagos, além de escrever A Casa da Água Antonio Olinto produziu uma obra de pesquisa histórica, chamada Brasileiros na África, em que faz um apanhado do assunto. No ano passado, o professor Victor Leonardi e o cineasta Renato Barbieri realizaram o documentário Atlântico Negro na Rota dos Orixás, estabelecendo laços entre imigração e religião. Há trinta anos, o embaixador Alberto Costa e Silva produziu um ensaio sobre o tema, chamado Vícios da África. "Até hoje esse episódio permanece na semiclandestinidade", diz. Acompanhar a trajetória desses brasileiros capazes de dar a volta por cima na mais dolorosa condição humana, que é a escravidão, é partilhar uma surpreendente aventura.


Negreiros ricos e famosos

Xaxá VIII: dinastia de 200 anos

Nenhum traficante de escravos foi tão rico e famoso quanto Francisco Félix de Souza, o primeiro "Xaxá". Mulato, aparecido na África no final do século XVIII, Xaxá fundou uma dinastia familiar riquíssima, que sobrevive há 200 anos. O atual patrimônio da família, um dos maiores do Benin, é administrado pelo empresário Honoré Feliciano de Souza, o Xaxá VIII. Os viajantes do século passado descrevem a casa de Xaxá I com "alguma coisa de palácio oriental" e outro tanto de "palacete de novo-rico", mas contam que ali se usavam roupas importadas da França, se ofereciam charutos de Havana e cachaça do Brasil. Xaxá I viveu cercado de belas mulheres e, em sua morte, recebeu as honrarias de praxe no continente na época: cinco meses de festejos fúnebres, em que foram sacrificados cinco seres humanos – um rapaz, uma moça e três adultos. Seus sucessores deixaram lembranças variadas. Xaxá II assumiu o posto após uma briga de família, mas morreu moço. Xaxá III fez levantar uma casa onde usava cachaça em vez de água na argamassa. Xaxá IV aliou-se a Portugal, que tentou recuperar espaço na África. Já o Xaxá V teve os bens confiscados, mas seu sucessor pegou tudo de volta.



Imagens desta postagem: Revista Veja de 07/07/99.

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