Cicatrizes de açoites em um escravo. Foto Wikipédia.
Os textos que vão abaixo são da autoria de Luiz Mott, estes textos ilustram bem um passado em que a Inquisição dominava -também- no Brasil. São textos dos arquivos do antigo Geocities, verdadeiras pérolas da pesquisa afro-brasileira. O primeiro trata da atuação da Inquisição no Estado de São Paulo, e o segundo trata de um relatório de denúncias no Estado da Bahia ao Santo Ofício.
"Paulistas e Colonos de São Paulo nas Garras da Inquisição"
Autor: Luiz Mott.
Muito pouco se escreveu até hoje sobre a Inquisição em São Paulo. Tema apaixonante mas pouco pesquisado, malgrado a existência de documentação substantiva que permite-nos afirmar que este Monstrum Horribilem, o famigerado Tribunal do Santo Ofício da Inquisição teve atuação muito mais freqüente e repetida na Capitania de São Paulo, do que até agora os historiadores revelaram.
Quando se fala da presença do Santo Ofício da Inquisição no Brasil, imediatamente se pensa no Nordeste, posto ter sido a Bahia e Pernambuco as Capitanias mais atingidas pela famigeradas Visita-ções de 1591 e 1618 (1). Embora bem menos devassadas, também as Capitanias do Sul, inclusive São Paulo, padeceram terríveis cons-trangimentos e perseguições por parte do incendiário Monstro Sa-grado, tanto que dos 20 morado-res do Brasil a ser queimados nos Autos de Fé de Lisboa, quando menos dois eram residentes nos planaltos de Piratininga: Teotônio da Costa (1686) e Miguel de Men-donça Valhadolid (1731) ambos in-culpados por praticar a Lei de Moi-sés. (2)
Após prolongadas pesquisas na Torre do Tombo, de Lisboa, on-de estão arquivados mais de 40 mil processos inquisitoriais e outro tanto de denúncias e confissões pertencentes à alçada do Santo Ofício, localizamos pessoalmente, até agora, 47 episódios envolven-do moradores da Capitania de São Paulo - material em sua maior parte inédito e que aguarda que al-gum pesquisador da terra lhe dê tratamento mais acurado e a divul-gação que está por merecer.
Praticamente todos os crimes perseguidos pela Inquisição foram praticados e denunciados em São Paulo, destacando-se 16 padres so-licitantes, oito sodomitas, sete bígamos, sete feiticeiros, três auto-res de proposições heréticas, dois cristãos-novos e ainda dois episó-dios envolvendo irregularidades no exercício do cargo de Familiar do Santo Oficio. Tais números certa-mente estão sujeitos a acréscimos - sobretudo quanto à presença dos criptojudeus, a minoria religio-sa mais perseguida pela sanha in-quisitorial - sobre os quais o lei-tor interessado encontrará maiores informações notadamente nas obras de José Gonçalves Salvador, Arnold Wiznitzer e Anita Novinsky.(3)
Dos residentes na Capitania de São Paulo cujos nomes e des-vios chegaram ao Tribunal do San-to Ofício, nos concentraremos inicialmente nos inculpados em crimes da fé: sete acusações de feitiçaria, três denúncias de pro-posições heréticas e dois casos de livres-pensadores. Numa segunda parte deste ensaio analisaremos as histórias de vida de 16 padres residentes na Capitania de S.Paulo envolvidos com melindroso pecado: a solicitação no confessionário de suas penitentes para atos torpes, na época chamada de "solicitatio ad turpia".
Deixaremos para outra ocasião o estudo dos demais desviantes se-xuais: os oito sodomitas (homos-sexuais masculinos) e os sete bíga-mos.
Os doze epi-sódios atinentes aos chamados "crimes contra a fé" ocorreram entre os anos de 1741 é 1781, portanto no período que inclui a restauração da Capi-tania (1765) e a chegada de seu pri-meiro Bispo (1764), época em que essa região, até então muito mar-cada pelo apresamento e tráfico de índios, amplia sua base econômi-ca, passando a incrementar, além da policultura de subsistência, a florescente agroindústria açucarei-ra e a manufatura têxtil, as famo-sas redes paulistas tão disputadas pelos viajantes coloniais. E nessa segunda metade do século XVIII que tem lugar a maior ocupação das regiões de Atibaia, Sorocaba e Itu - exatamente as áreas mais citadas nos medonhos Cadernos do Promotor da Inquisição de Lisboa.
Hereges e libertinos
Desses doze episódios des-viantes em questão de Fé ocorri-dos em São Paulo, comecemos pe-lo mais recuado cronologicamente - 1741 - quando um cidadão re-sidente na vila de Araritaguaba (hoje Porto Feliz) é denunciado ao Santo Oficio como libertino. Eis como o dicionarista Antônio de Moraes e Silva, ele próprio denun-ciado à Inquisição de Coimbra por esse mesmo crime, definia o que era um libertino: "Indivíduo que é incrédulo na religião e ofende as suas práticas; pessoa que sacudiu o jugo da revelação, entendendo que a razão por si só pode guiar com certeza no que respeita a Deus, à vida futura etc., e por isso não segue os preceitos da religião, antes, pratica atos contrários aos seus princípios".(4)
Essa denúncia ocorreu entre os dias 20-25 de setembro de 1741, inculpando Lucas da Costa Perei-ra, natural do Funchal, então mo-rador na Freguesia de Nossa Se-nhora da Penha de Araritaguaba, sita na margem esquerda do rio Tietê, a cinco léguas de Itu, céle-bre porto de onde partiam as mo-ções rumo à hinterlândia (5).O acusado era "cirurgião aprovado" e constava ter percorrido "toda a América Meridional, assistindo em muitas terras, aldeias e arraiais da Bahia, Rio de Janeiro e São Pau-lo, entre elas Pindamonhangaba e Taubaté". Devia beirar os 50 anos quando chegou à Inquisição de Lisboa a denúncia de que esse ci-rurgião madeirense "come carne nos dias proibidos, não ouve mis-sa e é acostumado a ter atos so-domíticos, sendo agente, com vários negros boçais para cujo fim os sustenta com largueza"(6). Um de seus denunciantes ostentava nome pomposo: Capitão Salvador Mar-tins Bonilha, morador na mesma freguesia, que interpretou as prá-ticas libertinas do cirurgião andarilho como "crime de judaísmo", acrescentando ao rol de suas culpa-s um hediondo sacrilégio muitas -vezes atribuído aos criptojude-us: "teria metido no fogo uma imagem do Menino Jesus!" . Zeloso, o Comissário do Santo Ofício local acondicionou num tufo de algodão a referida imagem carbonizada e a despachou além-mar para que os próprios delegados inquisitoriais avaliassem o sacrilégio. Solícitos em cortar o mal pela raiz, ordenam os Inquisidores a abertura de um Sumário - ordem que leva seis meses de viagem para chegar do Reino às margens do Tietê. Aos 20 de agosto de 1743 tem início o inquérito secreto "em um corredor do Convento do Carmo da Vila de Itu", desempenhando o cargo de Comissário do Santo Ofício o Padre Miguel Dias Ferreira e como escri-vão o carmelitano Frei Diogo Antunes. Uma dezena de testemunh-as confirma as acusações, insistindo, contudo, insistem mais no crime sodomia do que no de "liberti-no" ratificando a preferência do réu por negros boçais, incluindo entre seus cúmplices alguns nativos de Angola, Congo, Benguela, além de crioulos, aos quais "regalava-os com comida e aguardente, brindando-os ele primeiro..." Um sodomita reinol praticante da democracia racial em pleno período escravsita... Entre seus desvios religiosos, além dos já citados, constava "só querer comer touci-nho com couves às sextas-feiras". Sacrilégio cabeludo para aquela época em que qualquer pecadilho levava os católicos a uma eternidade de dias nas chamas do purgatório.
Quando do início desse Sumá-rio, o cirurgião Lucas já tinha se retirado de São Paulo, com destin-o às Minas de Goiás, tanto que somente por volta de 1747 é que a Inquisi-ção conseguirá finalmente agar-rar o sodomita libertino de Arari-guataba, sendo condenado primeiro à pena dos açoites, em segui-da a dez anos de degredo nas galés del-Rei.
Por conta das Visitas Pastorais realizadas no Bispado de São Paulo -pelo Padre Policarpo de Abreu Nogueira, entre 1765-1771, diversos são os desviantes a ter seus nomes enviados ao Tribunal da Fé de Lisboa. Entre eles, o tropeiro Luiz Carvalho Souto, também morador na freguesia de Nossa Senhora Mãe dos Homens de Araritaguaba, que como o cirurgião do Funchal, mantinha acesa nessa vila a chama iluminista da "seita dos libe-rtinos'; sendo acusado de comer carne nos dias proibidos, não se confessar conforme ordenam os mandamentos da Santa Madre Igreja, defendendo ainda a heréti-ca proposição de que "o sexto mandamento (não pecar contra a castidade) não era pecado e nem levava ninguém ao inferno"(7). Centenas de colonos e moradores não só do Reino de Portugal mas também da Espanha foram igualmente denunciados ao Santo Ofício por defender publicamente a mesma convicção: que a "fornicação simples", como os teólogos chamavam às práticas sexuais de gente desimpedida fora do casamento, não eram moralmente condenáveis.
Além destes dois libertinos das margens do Tietê. mais quatro moradores da Capitania de São à Paulo são denunciados por emitirem opiniões contrárias à ortodoxia católica. Em 1762, na vila de Taubaté, Pascoal Pereira, solteiro, defendia que "as almas condenadas haviam de ser remidas, e sua condenação não seria eterna"(8), opinião muitas vezes ressuscitada ao longo dos dois milênios da his-tória cristã, e que teve em Giovan-ni Papini (1881-1956) seu mais re-cente defensor. Proposição herética altamente revolucionária - não obstante estar muito mais próxima da caridade cristã do que a intransigência do preceito canônico católico oficial - pois abria espaço para os réprobos (condenados ao inferno) de no futuro se beneficiarem da misericórdia divina - relativizando destarte o medo da condenação eterna.
Em 1770, na Devassa realiza-da pelo incansável Visitador Padre Policarpo de Abreu Nogueira, na Freguesia de Nossa Senhora do Bonsucesso de Pindamonhangaba, saiu denunciado Pedro Antonio "negociante de negros e animais", acusado de também defender que "Jesus não deixou o 6° Manda-mento como pecado entre os sol-teiros, e só o deixou por São Pe-dro instar .:"(9)certamente ale-gando ter sido o Príncipe dos Apóstolos o único dos Discípulos a ter a sogra citada no Evangelho. Pelo visto, a defesa de que a "fornicação simples não era pecado" foi das proposições heré-ticas mais constantes não só na Pe-nínsula Ibérica, como também na América Latina, inclusive em São Paulo Colnia,(10) vertente hete-rodoxa reforçada pela generaliza-da e até hoje cantada opinião em verso e prosa de que "não existe pe-cado debaixo do Equador".
No ano seguinte, o mesmo sa-cerdote comunica a Lisboa que na visita à Freguesia de São João de Atibaia saiu denunciado o sitiante Francisco Camargo Pimentel, por repetir o mesmo impropério: que "o 6° Mandamento não era peca-do"(11). Até na remota Itapeva, "si-tuada junto à estrada real na vizi-nhança do Rio Verde, pequena vila com matriz dedicada a Sant'Ana,(12) havia leigos que ou-savam interpretar a Doutrina à sua moda, em flagrante conflito com o ensinamento de Roma.
Em 1777 chega aos Estaus do Tribunal do Rossio a informação inculpando mais um paulista: constava que Manoel José, vendedor de fazendas secas, defendia que "no inferno não se padeciam tormen-tos e os padres diziam isto para aterrorizar, pois (o castigo) era so-mente o não ver Deus"(13). Opi-nião absolutamente contrária aos dogmas da Sagrada Teologia que afirmava "sofrerem os réprobos no grande lago da ira de Deus, duas sortes de castigos: a pena do da-no, que consiste na privação da vis-ta de Deus e a pena do sentido, o tormento de arder num fogo que nunca se extinguirá!"(14)
Ainda mais um paulista tem seu nome registrado nos volumo-sos e temidos Cadernos do Promo-tor da Inquisição de Lisboa, incul-pado de proferir heresias relativas à moral sexual. Manoel Xavier Lacerda, "morador em Jacuí, Capita-nia de São Paulo" , vivia aman-cebado com uma cunhada, e defendia que por esta causa não devia ser excomungado conforme determinavam as Constituições Pri-meiras do Arcebispado da Bahia (§969 e seguintes), alegando ha-ver muitos homens amancebados com suas comadres, cunhadas e parentes, "e se Deus não houves-se de dar o céu aos homens por causa do 6° Mandamento, que guardasse o céu para palheiro, acrescentando que o 6° Manda-mento não era pecado pois se o fosse ninguém se salvaria", defen-dendo ainda abertamente a heré-tica proposição de que "a fornica-ção simples não era pecado".(15)Êta paulistaiada petulante!
Feiticeiros, Curadores e Mandi-ngueiros
Entre 1762-1781 chegam à In-quisição lisboeta sete denúncias contra moradores da Capitania de São Paulo envolvidos com a práti-ca de diferentes tipos de sortilé-gios, sendo três curadores, três fei-ticeiros e um portador de uma "bolsa de mandinga" , três dos quais viviam em Guarapiranga, e os restantes em Santos, Cotia, Mogi das Cruzes e Sorocaba. Todos os protagonistas destes episódios, em sua maior parte são descendentes de africanos, e suas história permaneceram até hoje ignoradas na poeira dos arquivos inquisitoriais, e é com alegria que os resgatamos à luz do dia, forne-cendo aos estudiosos das religiões afro-brasileiras informações inédi-tas sobre práticas divinatórias e ce-rimônias cabalísticas praticadas em São Paulo na segunda metade dos Setecentos.
As chamadas bolsas de man-dinga ou patuás eram amuletos apreciadíssimos pelos colonos afro-luso-ameríndio-brasileiros, tendo levado às barras do Tribunal da Fé mais de uma dezena de escravos e liber-tos não só do Brasil, como também de Portugal(16), sendo este o motivo da realização de um Sumário de cul-pas na Visita Pastoral de Soroca-ba no ano do Senhor de 1767. "Vi-la considerável e florescente, é ornada com uma igreja paroquial da invocação de Nossa Senhora da Ponte, um recolhimento de mu-lheres, um Hospício de Bentos, uma Ermida de Santo Antônio e outra dedicada a Nossa Senhora do Rosário, cuja construção os pre-tos continuam".(17) Famosa por sua feira de muares, em Sorocaba se concentrava buliçosa população de tropeiros, vaqueiros, tangedores e viandantes, os principais aficio-nados desta devoção a um tempo sincrética e sacrílega, à qual se atribuía o poder de "fechar o cor-po" contra todo tipo de perigos fí-sicos ou malefícios diabólicos.
O acusado era conhecido tão- somente pelo nome de João, Mu-lato Escravo. Ao ser agarrado pela autoridade eclesiástica, aberto o patuá que trazia no pescoço, den-tro se encontrou um pedaço de sangüíneo (espécie de guardanapo utilizado na missa para limpar as derradeiras gotas do sangue de Cristo conservadas no cálice), um pedacito de corporal (toalhinha destinada a abrigar partículas do corpo de Cristo caídas no altar), além da folha de um missal com oração e gravura de Jesus, uma hóstia consagrada - que segundo declarou o réu, fora-lhe ofertada por um sacristão - "e muitas ou-tras coisas, como raízes, dentes de cobra, etc. que por não serem da Igreja, foram queimadas".(18) Diz o documento que "o sangüíneo ain-da cheirava vinho" sugerindo ter sido recentemente surrupiado da sacristia. Ao ser inquirido por que razão trazia a dita hóstia consagra-da, respondeu o mulato João que "era para comungar na hora de sua morte", inspiração piedosa porém sacrílega, posto que até poucos anos, apenas os sacer-dotes tinham o privilégio de tocar no preciosíssimo corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Só um estu-do comparativo dos outros réus do Brasil, que por trazerem semelhan-tes bolsas de mandinga foram pre-sos e processados nos cárceres se-cretos da Inquisição, poderá esclarecer porque este escravo de Sorocaba teve melhor sorte, sen-do arquivado este Sumário sem que os Inquisidores determinassem seu aprisionamento. Aliás, salvo er-ro, nenhum dos residentes em São Paulo acusados pela prática de fei-tiçaria chegou de fato a ser encar-cerado pela Inquisição, nem mes-mo a perigosa bruxa Inácia, negra crioula, escrava de Manoel Perei-ra Camargo, residente em Cotia. infamada de ter morto a muitas pessoas graças a seus medonhos feitiços.(19)
Sobre alguns destes feiticeiros e cu-radores dispomos de interessantes informações sobre o modus operandi no exercício de suas artes divina-tórias. Vários deles viviam sob o jugo da escravidão, como o negro José, escravo de Francisco Andra-de, morador na Freguesia de San-tana de Mogi das Cruzes, contra o qual é feito um Sumário onde 19 testemunhas fornecem interessan-tes detalhes etnográficos sobre suas mistificações(20).É acusado de "curar feitiços no Distrito a fora, adivinhando quem os botou, usando de uma panela (de barro) nova, onde colocava caveiras de caranguejos (e de outros animais) com água, e na boca mete um dedal de prata dizendo certas palavras, ten-do um frango preto ao lado da panela." Uma testemunha dá outras informações: disse que as caveiras usadas por José eram de pássaros (corvos) e que durante o "traba-lho"; falava palavras em sua língua nativa, desenterrando com uma fa-ca, dentro ou fora das casas, assim como pelas encruzilhadas das es-tradas, misteriosas botijas ou sa-quinhos repletos de ossos de sa-po, penas, vidros, cabelos, pimenta, agulhas e outros espan-tosos ingredientes. Tinha também o costume de tirar água da dita pa-nela e aspergir com a boca pela so-leira da porta, ou esguichando-a no chão quando abria os ditos bu-racos para desenterrar feitiços - mantendo sempre o galo preto a seu lado, do qual, certa feita, tirou três penas do rabo, com elas fazendo uma cruz quando no ato de descobrir malefícios. A um doente recomendou o uso de defumadores. Tudo leva a crer que o es-cravo José gozava de boa consideração por onde passava, tanto que na época em que morou na Freguesia da Sé, na cidade de São Paulo, freqüentou ilustres re-sidências, tendo tratado de Dona Antonia Pinta do Rego, e em Mo-gi a Maria de Cândia Siqueira, além de outros brancos e a incon-táveis negros.
Enquanto este negro de Mogi das Cruzes era expert em desen-terrar feitiços, na vila de Santos ou-tro escravo é denunciado exatamente pelo contrário: por ser autor de terríveis malefícios. Chamava-se Felipe - e encontrava-se preso por ordem do Capitão do Forte da Praça de Santos, sob a acusação de ter feito um feitiço tão forte e peçonhento contra seu senhor, o qual "só tem calma mediante os exorcismos da Igreja": Provavelmente pressionado por violenta tortura, o preto Feli-pe confessou ter praticado os seguintes malefícios: primeiro mistu-rou na comida de seu amo um bocadinho de pó de defunto e dente de jacaré, provocando-lhe fortes dores nas cadeiras e barriga. Em seguida, enterrou debaixo da porta de sua casa um pássaro mirrado, dois ovos de galinha e uma raiz grossa de butá (planta da família das Menispermáceas, também chamada "falso paratudo", raiz medicinal preta por fora e amarela por dentro). Disse ter feito este feitiço "para seu senhor ir mirrando, e que quando os ovos apodrecessem, também lhe apodreceriam as entranhas e que a raiz do butá era para ele conservar a vida e não morrer logo". O negro era o Cão! Disse mais, que fora o preto crioulo Manoel, então trabalhando nas minas de Mato Grosso, quem lhe ensinara tais artes cabalísticas, o qual, certa vez, chamando pelo Diabo à meia noite, em vez de apenas um, apareceram dois Demônios, entrando um no corpo do escravo Felipe e o outro se apossando de seu senhor. Fantasioso, este feiticeiro de Santos ga-rantia que, enquanto esteve preso, uma cobra se encarregava de guar-dar os feitiços que enterrara na ca-sa de seu amo. Ao ser-lhe arran-cada do pescoço sua bolsa de mandinga, assim foram identifica-dos seus ingredientes: um dedo de criança(21), lasquinhas de unha, osso de defunto, pó de sapo, raiz de mil-homens (planta da família das Aristolóquias, usada como contraveneno nas picadas de co-bra), unicórnio (chifre de rinoce-ronte). Irônico, o Capitão do For-te da Praça de Santos conclui assim sua denúncia: "Se o escra-vo Felipe é feiticeiro, que o Santo Ofício conclua..."(22)
Encerramos esta primeira coleção das histórias dos moradores de São Paulo denunciados ao Tribu-nal da Inquisição pelo crime de fei-tiçaria com três acusações registra-das na vila de Guarapiranga (município de Ribeirão Bonito, zo-na do Paranapiacaba), no ano de Senhor de 1772. Diferentemente de todos os demais casos, aqui o delatado é um branco, Bento de Lima Prestello, sobrenome de ori-gem italiana, e seu denunciante, Isidoro da Silva Costa, residente na Capela de São Miguel, no mesmo distrito. Disse que este curador vie-ra das minas do Sabará, da fregue-sia de Santo Antônio da Roça Grande, e assim praticava seus ri-tuais heterodoxos: "punha na mão do enfermo umas raízes contra be-ninos ("doença que não apresenta caráter grave"), para saber se tinha ou não feitiços, e se a mão tremia, tinha; benzia então o enfermo di-zendo: Jesus, Nome de Jesus, Deus te fez, Deus te curou, Deus acanhe a quem te acanhou. Deus te tire o mal que no teu corpo entrou: o ar de lua, ar de figueira, ar de pe-reira, ar de perlezia, ar de corrup-to, ar de inveja, ar de feitiçaria, ar de enchaque, ar de maleitas e mais coisas que não estou ciente pelos poderes da Virgem Maria, São Pe-dro e São Paulo, que o corpo de Fulano fique são e salvo como na hora em que foi nascido, assim como Nosso Senhor sarou das cinco chagas. Padre-Nosso, Ave Maria". Além desta reza forte, o curador Prestello é acusado de exorcizar os endemoniados - privilégio exclu-sivo dos sacerdotes detentores da autorização episcopal - "fazendo adivinhações com uma grande bol-sa, batendo os pés no chão como fazem os exorcistas, e com uma cruz de contas fazia cruz na cabe-ça da pessoa enferma que tinha es-pírito maligno, dizendo umas pa-lavras incompreensíveis e também batia com a bolsa na parte dolori-da do enfermo".(23)
Nesta mesma ocasião são de-nunciados como feiticeiros mais dois moradores da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Guarapiranga: o escravo identifica-do como João, Preto Mina, useiro em receitar remédios cabalísticos, o qual, ao ser procurado por um tal Pedro Teixeira, respondeu que "não podia curar sem falar com sua gente" - provavelmente referindo-se a seus ancestrais de-sencarnados, aos quais os nativos da Costa da Mina atribuem pode-res preternaturais. Embora africa-no nato, este João de Guarapiran-ga já incluía em seus rituais inovações apropriadas da tradição luso-brasileira: "fez uma cruz no chão e no seu meio pôs uma pe-dra de sal e pingava-lhe uma pin-ga de cachaça, dando logo asso-bios na tal cruz, e saudava a todos com Louvado Seja Cristo! e como não entendiam os tais assobios, ex-plicava o preto de boca".
Além de João Mina, outro fei-ticeiro de Guarapiranga é citado na mesma denúncia: José Gonçalves, preto forro, o qual "fazia adivinha-ções por diferente modo - com uma boceta (caixinha de guardar rapé) dava assobios e depois apli-cava os remédios ensinados por sua gente"(24).
Por mais de dois séculos esta dezena de feiticeiros, libertinos, hereges e curadores ficaram esque-cidos na poeira dos arquivos. Ao resgatar-lhes a memória, duas fo-ram nossas intenções: estimular outros pesquisadores a rever cui-dadosamente os manuscritos ori-ginais que aqui nos contentamos em resumir, além de indicar sua lo-calização arquivística, facilitando o trabalho de futuros estudiosos. Nossa inten-ção mais profunda é chamar a atenção de todos, pesquisadores e leitores, para o perigo representa-do pela hegemonia dos monstros sagrados - sejam os Minotauros, Chibungos, Inquisições e espectros quejandos, que à moda dos mistificadores, quiromantes e prestidi-gitadores do além, pretendem ser os donos de uma verdade revela-da que no mais das vezes não pas-sa de simplória alienação quando não condenável charlatanismo. Concluo a primeira parte deste ensaio fazendo minhas a pala-vras luminares do Dr. Antônio Gonçalves Gomide, que em 1814 publicou um corajoso opúsculo desmascarando a falsa santidade de uma beata mineira, sua contempo-rânea: "Talvez me argúam dizen-do: que te importa a piedosa frau-de em que vivem satisfeitos os crédulos? Privá-los desta ilusão não é tirar-lhes um entretenimento que os consola? Respondo: A verdade é o principal elemento da vida so-cial. A impostura aos ignorantes equivale à opressão da força sobre os mais fracos. O filósofo deve achar e promulgar a verdade.(25)
NOTAS
Agradeço ao CNPq a dotação que me permitiu realizar pesquisas na Torre do Tombo. Este artigo faz parte de um estudo mais amplo intitulado "Moralidade e Sexualidade no Brasil Colonial" e uma versão modificada foi originalmente publicada no D.0. Leitura, SP, 10 (120), maio de 1992.
1. Siqueira, Sônia. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial, São Paulo, Editora Ática, 1978.
2. Wiznitzer, Arnold. Os judeus no Brasil Colonial, São Paulo, Editora Pioneira, 1966:147
3. Salvador José G. Os Cristãos-Novos: Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro. São Paulo, 1976; Cristãos-Novos, Jesuítas e Inquisição. São Paulo, Livra-ria Editora Pioneira, 1969. Novinsky Ani-ta W. Inquisição. Inventários de bens confiscados a Cristãos-Novos. Lisboa, Im-prensa Nacional. 1977.
4. Moraes e Silva, Antonio. Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa, Empreza Literária Fluminense, s/d.
5. Aires de Casal, Manuel. Corogratia Brasílica. (1817) São Paulo, Livraria Edi-tora Itatiaia/USP 1976: 114
6. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante ANTT), Inquisição de Lisboa, Caderno do Nefando n° 19, fl. 411, 20-9-1741
7. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Araritaguaba, 25-9-1765.
8. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 126, Taubaté, 8.6.1762.
9. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Pindamonhanga-ba, 10-12-1770.
10. Vainfas, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1989.
11. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Atibaia, 18-2-1771.
12. Aires de Casal, Op. Cit. 1976: 114
13. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Itapeva, 4-10-1777
14. Guillois, Abade Ambrósio. Explica-ção Histórica, Dogmática, Moral, Litúrgica e Canônica do Catecismo. Porto, Li-vraria Internacional, 1878: 426.
15. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 131, Jacuí, 27-7-1781.
16. Mott, Luiz. ' A Vida Mística e Eróti-ca do Escravo José Francisco Pereira. "Tempo Brasileiro, (92-93), Jan/Jun. 1988: 85-104. Souza, Laura de Mello. O Diabo na Terra de Santa Cruz. São Paulo, Com-panhia das Letras, 1988.
17. Aires de Casal, Op. Cit. 1976: 114
18. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Sorocaba, 1767
19. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 130, Denúncia do Co-missário Salvador Camargo Lima, 1781.
20. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 126, Mogi das Cruzes, fl. 32, 1762
21. Mott, Luiz. "Dedo de Anjo, Osso de Defunto: Os restos mortais na feitiçaria afro--luso-brasileira. "D.O. Leitura São Paulo, 8 (90) novembro 1989: 1-3.
22. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Santos, 7-10-1776.
23. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Guarapiranga, 10-5-1772.
24. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Guarapiranga, 10-5-1772.
25. Gomide, Antonio Gonçalves. Impug-nação analítica ao exame feito em uma rapariga que julgaram santa na capela da Piedade, Comarca de Sabará. Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1814
"Torturas e Heresias na Casa da Torre: Bahia, Séc. XVIII(1)"
Autor: Luiz Mott
Foi na Torre do Tombo - o maior arquivo português, manancial inesgotável de manuscritos relativos ao Brasil Colonial - onde encontramos um dos documentos mais chocantes de todo nossa história: são 12 folhas manuscritas por um ilustre desconhecido, José Ferreira Vivas, que nos finais do século XVIII envia da Bahia de Todos os Santos ao Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa uma denúncia com 47 itens contra o homem mais rico do Brasil, Garcia D'Ávila Pereira Aragão , herdeiro e proprietário da famigerada Casa da Torre.
Das 47 denúncias, 26 itens referem-se a torturas e castigos crudelíssimos aplicados pelo Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão contra seus escravos - cujos requintes de crueldade chocam mesmo ao mais empedernido coração! - sendo 21 os itens que incriminam o proprietário da Casa da Torre em blasfêmias e irreverência contra a religião católica - a única permitida na época em toda cristandade.
Garcia D'Ávila Pereira Aragão nasceu em Santo Tomás do Iguape aos 4 de outubro de 1735, na fazenda de seu avô Garcia D'Ávila Pereira. Casou-se duas vezes, primeiro com D. Teresa Cavalcanti de Albuquerque, filha do alcaide-mor da Bahia, e após sua morte, realizou segundas núpcias com D. Josefa Maria da Conceição e Lima, descendente da tradicional família Rocha Pitta. Um seu contemporâneo informava que sua segunda mulher jamais se arriscou a fazer vida conjugal na Casa da Torre com o 4o Garcia D'Ávila, preferindo ficar mais sossegada, morando na residência paterna.
Segundo avaliação do historiador da Casa da Torre, Pedro Calmon, "sem nenhuma dúvida, foi o mais rico dos filhos do Brasil, inteligente e arrebatado: o último varão da estirpe dos Garcia Dávila..." Foi agraciado com a comenda de Cavaleiro da Ordem de Cristo e Mestre de Campo dos Auxiliares da Torre (1753) e descrito por seus contemporâneos como "cavaleiro selvagem na forma exterior".
A divulgação deste documento da Torre do Tombo justifica-se por três razoes principais: primeiro por revelar o lado mais cruel e sanguinário da escravidão, sendo este rol de atrocidades, certamente, o relato mais violento e pungente que se tem notícia na história do Brasil, quiçá em toda história do escravismo no Novo Mundo.
A segunda justificativa de se divulgar este manuscrito é revelar as blasfêmias e práticas anti-religiosos perpetradas por um destacado membro da elite colonial, comprovando os limites reais da autoridade aterradora do Tribunal da Inquisição, que apesar de poder confiscar os bens, açoitar e condenar à fogueira os hereges e heterodoxos, não chegava a inibir palavras e ações francamente hostis à Santa Religião. Saiba o leitor que malgrado a gravidade destas denúncias, o Santo Ofício nada fez contra este mau cristão, agindo com a mesma indiferença, igualmente, em relação a certos blasfemos despossuídos de riquezas.
A terceira razão que justifica a divulgação deste documento neste livro tem a ver com o que ele diretamente nos informa, e de primeira mão, sobre a própria Casa da Torre: ao descrever as torturas e sacrilégios ali praticados por seu terratenente, o denunciante fornece, aqui e acolá, dados concretos sobre as instalações, espaços, utensílios e personagens que compunham o dia a dia e se movimentavam dentro desta portentosa propriedade senhorial do Recôncavo Baiano.
Sugiro que o leitor preste atenção não apenas nos atos cruéis e irreverentes praticados por Garcia D'Ávila Pereira Aragão , mas também atente para os aspectos materiais e sociais que servem de pano de fundo a este espantoso relatório. À guisa de contribuição para se reconstituir tal paisagem, no final do manuscrito enumero e esclareço alguns elementos citados no documento que permitem-nos visualizar o interior, as redes de relação e o quotidiano da famigerada Casa da Torre.
DOCUMENTO : Denúncia ao Santo Ofício contra Garcia Dávila Pereira Aragão
"Senhor Reverendo Vigário Antônio Gonçalves Fraga
Meu Senhor: a Vossa Mercê deponho, como Comissário do Santo Ofí-cio, as heresias ditas e feitas pelo Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão, contra Deus Nosso Senhor e os Santos, desencar-regando nesta parte a minha consciência com V. Mercê, como assim man-dam e ordenam os Editais do Santo Ofício, e constam dos itens seguintes:
Heresias que faz aos seus escravos
Item 1. Que a um escravo crioulo chamado Hipólito, de idade de 16 anos, pouco mais ou menos, o mandou montar em um cavalo de pau, e mandou lhe amarrassem em cada pé uma arroba de bronze, ficando com os pés altos, e o mandou deitar sobre o cavalo, mandando dois negros açoitá-lo, que o fizeram por sua ordem rigorosamente, desde pela manhã 8 horas até as 11 horas do dia; que depois disto feito, o mandou amarrar com uma corda pelos pulsos dos braços juntos, e passada a outra parte da corda ao mourão da casa, o foram guindando até o porem com os pés altos fora do chão, braça e meia pouco mais ou menos; e mandou passar-lhe uma ponta da corda nos testículos ou grãos, bem apertada e na outra ponta Ihe mandou pendurar meia arroba de bronze, ficando no ar para lhes estar puxando os grãos para baixo; que o pobre miserável dava gritos que metia compaixão, e ao mesmo tempo, lhe mandou pôr uns anjinhos nos dedos dos pés ajuntando-os, que tal foi o aperto, que lhe fez o dito Mestre de Campo, que lhe ia cortando os dedos, e esteve com estes martírios obra de duas horas, que por Deus ser servido não morreu desesperado o arrenegado.
Item 2. Que a uma escrava mestiça chamada Lauriana de idade de 25 anos, pouco mais ou menos, a castigava o dito Mestre de Campo muitas vezes, dando-lhe com uma palmatória de pau pela cara e queixadas do rosto, levantando a mão com a maior força que podia, e andava esta con-tinuamente com o rosto inchado, procedido de semelhante castigo.
Item 3. Que querendo noutra ocasião castigar a mesma dita escrava acima, mandava buscar uma turquesa grande de sapateiro, e a mandava chegar a si, trepando-se ele, o dito Mestre de Campo em lugar mais alto, e metendo a turquesa aberta na cabeça da dita escrava, tudo quanto apa-nhava de cabelos fixando a turquesa, lhes arrancava de uma vez.
Item 4. Que em outra ocasião mandou pôr na dita escrava Lauriana um ferro no pescoço, com duas vergas levantadas, em alto, que teriam mais de palmo e meio, e em cada uma delas uma campainha e uma corrente muito grossa no pé, passando-lhe duas voltas pela cintura, indo a ponta dela atar às campainhas, e mais uns grilhões nos pés, como (se estivesse peada) man-dando-a assim cortar capim para os cavalos dali a meia légua, e às vezes mais longe, sem lhe dar de comer e sempre morta a fome; e por não trazer em um dia de domingo com brevidade e pressa o capim, a mandou açoitar numa cama de vento por dois escravos, Bastião e Domingos, cada um com suas correias açoitando a um tempo, que cansados estes, mandou continuar os açoites por outros dois, Narciso e Geraldo, e cansados estes mandou continuar pelos primeiros Bastião e Domingos, assistindo ele, dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão a todo este maldito suplício e martírio que teria no chão meio pote de sangue. E depois de tudo isto feito na dita cama de vento, amarrado cada pé e cada braço no ar por sua ponta de corda, com todos os ferros ditos acima, mandando aos ditos escravos a desatassem todos juntos a um tempo de pancadas, para cair acima assim com os peitos no chão do sobrado e levar grande pancada, como assim o fizeram; e depois a mandou meter numa prisão com ordem passada de duzentos açoites cada dia, mandando-lhe levar cada dia uma menina, parva quantia para comer, não consentindo-lhe desse água para beber; e no outro dia lhe mandou dar outra parva quantia de água, sem comer, tendo esta uns anjinhos nos dedos das mãos com todos os ferros já declarados e para comer e beber aquela parva quantia, que lhe davam, se lhe punha encima de um banquinho para comer como cachorro ou outro animal, com a boca no prato, lambendo ou apanhando com os beiços o que podia, por ter as mãos e dedos presos, sem consentir mais lhe fizessem fogo (de noite) e nem lhe dessem quanto o pedisse, para senão agüentar do frio muito que ali fazia no lugar onde tinha sido presa. E depois de tudo isto feito, a mandou amarrar pelos dois braços, cada qual com uma corda, e o guindando em alto no oitão da casa, com os braços abertos, como crucifi-cado, ficando-lhe os pés a uma braça em alto do chão, ele mandou no mesmo tempo amarrar uma arroba de bronze em cada pé, para estarem puxando mais para baixo, com os mais ferros já declarados, enrolados pela denturada (sic) corrente de guindar pedras ou caixas de açúcar donde a teve nesta forma desde o meio dia até às quatro ou cinco da tarde, urinando-se por si, com semelhante castigo, tolhendo-se-lhe também a fala, por lhe estar estirando os nervos da garganta, como ela assim o disse saindo deste martí-rio mais morta que viva. E mandou chamar Cosme Pereira de Carvalho e Luiza Mendes, pardas já de idade, para verem a obra de caridade que es-tava fazendo àquela pobre cristã, e quando elas lhe pediam abreviasse já aquele castigo ou martírio, dizia que aquilo não era nada. E se não a tivesse comprado um pardo chamado Bernardo da Rocha, e a levasse para o Ser-tão, teria morrido mártir nas mãos daquele Turco.
Item 5. Que a um escravo chamado Caetano, mestiço de idade 30 anos, pouco mais ou menos, pelo apanhar tocando uma rabeca em sua casa não estando ele ali, o mandou pegar e amarrar em uma cama-de-vento, ficando--lhe o corpo no ar, com os braços e pernas abertas atadas com argolas com suas cordas, e o começaram a açoitar desde as dez horas do dia até às quatro horas para as cinco da tarde, por dois açoitadores. E cansados estes, entra-ram outros dois, tudo a um tempo, como lhe dirá o mesmo açoitado, e em todo este tempo dos açoites, desmaiava o pobre mestiço, ficando sem fala em cujo tempo lhes estava o dito Mestre de Campo botando limão com sal nos olhos, com uma pena de galinha, por sua própria mão, que despertando o dito mestiço com o limão e sal nos olhos, mandava continuar com os açoi-tes, botando-lhe ao mesmo tempo cocos de água fria pelas nádegas, como se fosse um bárbaro com tão horrendo castigo. E depois de açoitado nesta forma, que já não tinha carne nas nádegas, o mandou pôr com uma argola pelo pescoço, ficando em pé não direito, porém quase encurvado, e assim o teve até às dez horas da noite, que por vários peditórios o aliviou da argola, indo dormir em uma corrente, sem querer que ninguém o curasse. E no outro dia de manhã, foi para uma argola, onde esteve todo o dia nu no sol sem comer, nem beber, até às nove horas da noite, que metia compaixão! E no cabo de dois dias, ninguém podia parar junto dele com o infecto que vinha das feridas, que eram tantos os bichos de moscas que parecia que estavam em riba de um defunto já cheio de corrupção. Escapou (vivo) pelo muito trato que tiveram dele suas tias Teresa e Clemência, tam-bém elas testemunhas.
Item 6. Que querendo o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão ir pescar por seu divertimento, mandou pôr uma escrava chamada Páscoa a uma lagoa ou rio apanhar isca para a dita pescaria. E por não chegar ao tempo que ele queria, veio para casa e mandou vir uma escada, mandando-a pôr de alto a baixo, e mandou amarrar a dita crioula na escada com a cabeça para baixo, pés para cima, mandando-lhe meter a cabeça por dentro do derradeiro degrau da escada, ficando-lhe a cabeça ou a testa tocando no chão, e o degrau bem em riba do toutiço (nuca), ficando com a cabeça arqueada, que quase morre afogada ou sufocada, com o de-grau que lhe ficava no cangote e dois negros açoitando-a, que por milagre de Deus não morreu afogada ou arrenegada, com tão desastrado e horrendo castigo.
Item 7. Que um menino de seis ou oito anos, chamado Manoel, filho de uma escrava chamada Rosaura, o mandou virar várias vezes, com o devido respeito, com a via de baixo para cima mandando o arreganhasse bem com as duas mãos nas nádegas, estando com a cabeça no chão e a bunda para o ar, estando neste mesmo tempo o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão com uma vela acesa nas mãos, e quando ajuntava bem cera derretida, a deitava e pingava dentro da via (ânus) do dito menino que com a dor do fogo, dava aquele pulo para o ar, acompanhado com um grito pela dor que padecia dos ditos pingos de cera quente derretida na via, sendo esta bastante. E disto rindo-se o dito Mestre de Campo, ao mesmo tempo com aquele regalo e alegria de queimar aquele cristão, o mandava que se fosse embora, dizendo: Ides para dentro de casa.
Item 8. Que uma menina de três ou quatro anos, pouco mais ou menos, chamada Leandra, filha de uma sua escrava chamada Maria Pai, a chamou e mandou se abaixasse e pondo a carinha da pobre menina declinada sobre um fogareiro de brasas acesas, e ele o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão pondo-lhe uma mão na cabeça, para que a menina com o calor não retirasse o rosto do fogo, em cujo tempo começou a abanar o fogareiro e a outra mão ocupada na cabeça da menina, sem ela a poder levantar, estando já a dita menina com o rosto defronte das brasas tão vermelhas e sapecado com as mesmas brasas, ao tempo que veio passando uma sua mulata, ama de sua casa, chamada Custódia, que vendo aquela heresia, lhe disse, gritando: Que é isso meu senhor, quer queimar a menina, não faça isso meu senhor! Então a largou, rindo-se como cousa que não fazia nada.
Item 9. Que a mesma menina Leandra, em outra ocasião, tirando-se um tacho de doce do fogo, estando o dito Mestre de Campo seu senhor assistindo a feitura do dito doce, chegando naquela ocasião a dita menina lhe perguntou o Mestre de Campo se queria doce, que dizendo a menina que sim, encheu uma colher de prata do doce, tirando-o do tacho, e estando ainda quase fervendo, derramou a colher do doce de repente na palma da mão da dita menina, e virando-se ela a mão no mesmo tempo para derramar o doce da mão por não poder aguardar pela estar queimando, logo investiu o dito Mestre de Campo, atracando-Ihe no pulsinho do braço, tendo a mão (de modo) que ela não o derramasse fora, ameaçando-a com gritos que o comesse e o lambesse e senão, que a mandava açoitar, e a miserável menina assim o fez, estando com a mão preza pelo pulso do bracinho, e saiu desta heresia com a mão e língua queimadas.
Item 10. Que manda as suas escravas deitarem-se com saias levantadas, e ao mesmo tempo, lhes vai botando ventosas com algodão e fogo nas suas partes pudendas, com a sua própria mão, dizendo: para chuparem as umidades - heresia tão ignorada entre a cristandade.
Item 11. Que a uma crioula chamada Teresa, sua escrava, casada, quan-do a apanhava dormindo, inda com a saia, antes de ser horas de dormir, ou de se deitar, levantando-lhe a saia, lhe metia uma luz acesa pelas suas partes venéreas, e toda a queimava, fazendo-lhe isto várias vezes, em ausência de seu marido, e quando todos os meninos e grandes se deitam neste caso, é à primeira e segunda cantada do galo e assim que o dia vai rompendo, que o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão se põe de pé, assim já hão de estar todos desta casa, grandes e pequenos, e o que não se levantou, logo vai à cama onde ele ou ela dorme, e com um chicote de açoitar cavalos, que já leva na mão, o põe miserável, e assim andam todos tresnoitados.
Item 12. Que apanhando o dito Mestre de Campo umas suas escravas dançando, depois de as mandar açoitar rigorosissimamente, Ihes mandou bo-tar uns papagaios de algodão com azeite nas partes venéreas, largando-lhe fogo, dizendo que era para lhes tirar o mesmo fogo, que todas as queimou.
Item13. Que uma sua escrava mestiça, chamada Rosaura, e duas mu-latas mais, Francisca e Maximiana, as mandou despir nuas, em uma sala, e ajuntando na mão dois rabos de um peixe chamado arraia, com eles as açoitou rigorosissimamente por todo o corpo, sem reservação de lugar al-gum, ficando estes corpos alanhados (golpeados) e cutilados, já sem pele, mandando depois arrancar os cabelos do pente (púbis) umas às outras, es-tando ele o dito Mestre de Campo no mesmo tempo com a sua própria mão barreando os ditos púbis com cinza quente para se arrancarem melhor, e quanto mais gritavam as pobres das dores que padeciam, mais com força mandava que arrancassem, lavrando ao mesmo tempo os malditos rabos de arraia. E depois de bem barbeadas nesta forma, mandou a cada uma se lhe desse vinte dúzias de açoites, e depois destas surras dadas, as mandou meter em correntes, e no dia seguinte mandou continuar com a mesma oficina dos açoites, e ficaram as miseráveis tão escandalizadas (maltratadas) do dito púbis e partes venéreas, que lhes inchou e pelaram da cinza, ficando o de-pois tudo em feridas e carnes vivas.
Item 14. No dia seguinte, sexta-feira da Paixão, mandou açoitar a dita Rosaura acima, e seu filho chamado Manuel, o qual já declarei no capítulo dos pingos de cera derretida, ambos rigorosamente; e a dita Rosaura, depois de açoitada, lhe mandou pôr uma grossa corrente no pescoço e uns grilhões nos pés, e depois disto feito, mandou chamar a um Alexandre José, rabequista, e metendo-lhe uma rabeca na mão, mandou que tocasse, estando com muita alegria no dito tempo e dia.
Item 15. Que costuma açoitar seus escravos maiormente no dia de Sexta Feira da Paixão, estando toda a semana muitas vezes sem açoitar. E no dia de Sexta Feira, anda em casa como endemoniado, ora dizendo pela casa passeando entre as suas escravas: A quem açoitarei eu hoje? ora dizendo: Ando com vontade de ver sangue de gente açoitado. E assim andam todos de casa assustados, vendo que é padecente. E naquela lida em que anda das nove horas por diante, manda pegar naquela ou naquele que lhe parece, e os manda açoitar por dois escravos, tudo a um tempo, até cansarem. E cansa-dos estes, manda continuar par outros dois, ora postos em escadas cruci-ficados, ora em camas de vento no ar, ora como lhe parece, sempre com martírios e heresias, deixando no chão poças de sangue, regalando-se de ver os cachorros comerem e beberem o sangue destas miseráveis criaturas.
Item 16. No mesmo dia anda em casa com um pauzinho na mão do ta-manho de um palmo, pouco mais ou menos, com uma ponta, chega-se a qualquer escrava, põem-se em pé junto dela, e começa a meter-lhe o pau-zinho pelo corpo, com quem quer furar: aqui mete, ali mete, e há de estar aquela escrava quieta suportando aquela tirania, ainda que lhe doa, e se ela buliu, como coisa que teve cócegas, ou recuou para trás, (diz): Pega! vai açoitar! e lá vai aquela pobre mártir. Muitas vezes busca para mandar açoi-tar no dia da Paixão.
Item 17. Que em outro ano, na Semana Santa, na Quarta feira de Tre-vas, açoitou e palmateou dois negros rigorosissimamente, Ambrósio e Narciso, e na Quinta Feira de Endoenças, tornou com a mesma diligência dos açoites de manhã aos mesmos. E de noite mandou açoitar a uma mulata, Francisca do Carmo, rigorosissimamente. E na Sexta Feira da Paixão, fez os mesmos castigos a outros escravos, como eles e elas assim o poderão confessar, e à forma como os castigou, e todos os anos na Semana Santa faz estes cas-tigos: para ele é o melhor prato, sem ficar Semana Santa alguma, há muitos anos, que não castigue naqueles dias, mormente na Sexta Feira da Paixão, com tanta alegria e vontade, que parece uma onça morta à fome em riba de uma carniça. E já se chegou a ele uma moça forra chamada Leandra de Freitas, achando-se nessa casa e suplício neste dia, pedindo ao dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão pelo amor de Deus não açoitasse naquele dia da Paixão do Senhor, respondeu o dito Mestre de Campo: Eu hoje, neste dia é que açoito! mandando continuar com os açoites mais rigorosamente.
Item 18. Que açoitando no mesmo dia o dito Mestre de Campo, em outro ano, a dois mulatos, Geraldo e Maximiana, rigorosamente, que disse a Ma-nuel Francisco dos Santos, seu foreiro e compadre se tinha regalado em tal dia de ver cachorros comer e beber sangue de gente açoitada, e foi certo que corria sangue dos dois cristão pela terra, que ensopava a mesma terra, pare-cendo um pote de água que se tinha derramado como assim dirão os mesmos escravos.
.Item 19. Que haverá cinco anos, que prendeu, depois de bem açoitadas, uma mulata escrava chamada Francisca do Carmo, e outra, chamada Ro-saura, cada uma com sua corrente, com a coleira pelo pescoço, e a outra ponta pregada no sobrado, onde estiveram presas nesta forma, sem dali se moverem de dia, nem de noite, para parte alguma, e haverá um ano, que as despregou do sobrado onde estavam presas, porém andando soltas ser-vindo a casa com as mesmas correntes no pescoço pela coleira com mais comprimento, enrolada pela cintura, e só se tiram estas correntes do pes-coço e cintura destas miseráveis no dia que se vão confessar pela desobriga da quaresma de ano em ano, porém vindo da confissão, logo para já lhe tornam a pôr as correntes na mesma forma dita acima, e há cinco para seis anos que andam estas pobres cativas com estas jibóias atracadas em si pela cintura e pescoço, sem delas poderem ter alívio algum, e já andam com o pescoço cheio de calos, feridos das coleiras, que continuamente trazem em si, assim dormindo, comendo, e assim doentes em uma cama, e assim toda a vida sem refrigério algum. Nascido este martírio, sem outra razão, ou fun-damento algum, senão pelas querer sujeitar com ele a ofensa de Deus, e quando não querem, indo da mesma sorte, lavra a novena de bacalhau, a novena de palmatoadas, com três dúzias de manhã, e três dúzias à tarde, e no outro dia, o mesmo, e assim vai continuando este castigo ou novena não ficando de fora os anjinhos, até elas se sujeitarem com ele a ofensa de Deus, contra a sua vontade. E esta devoção do Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão é qual nas suas escravas da porta a dentro e ainda porta a fora, com as mesmas suas afilhadas de batismo, como sucede e suce-deu com Ana, sua afilhada, filha de Martina já defunta, que quando ela não quer, a sujeita com vários açoites, anjinhos e martírios.
Item 20. Que esta Francisca do Carmo dita acima, atracada com a dita corrente, mandou ele, o dito Mestre de Campo que fosse ela dar de comer todos os dias a uma onça que tinha presa em uma corrente em um cepo, numa casinha evitando que os mulatos machos não dessem mais de comer à dita onça, só sim a dita mulata, por ser a raiva que dela teve, por evitar com ele dar ofensa a Deus: e isto o fazia com tamanho ânimo, oferecendo-se a Deus, gritando à onça que nunca a ofendeu. Porém, como Deus Nosso Se-nhor é pai de Misericórdia e Piedade, sabia o sentido com que o dito Mestre de Campo mandava aquela miserável botar de comer à onça, para ela a comer. Foi servido amanhecer um dia a dita onça morta, para alívio do susto com que aquela miserável escrava vivia, pois estava vendo o dia que a onça faria dela carniça ou prato.
Item 21. Que estando lendo livros de noite, deitado em uma rede, manda as suas escravas ou meninos pegar em uma luz, e ali está a pobre mulher ou o pobre menino em pé com a candeia na mão, desde as sete ou oito horas da noite, até meia noite, pouco mais ou menos, sem dali se mover, sempre com o cuidado de atiçar a candeia, e se daquele excesso de estar em pé até aquelas horas lhe sobrevem alguma coisa na cabeça, talvez de fracos, por não terem comido naquele dia, por andarem sempre mortos a fome ou outra qualquer moléstia ou dor, logo manda no mesmo instante açoitá-lo rigoro-sissimamente, ainda que seja meia noite, amotinando e assustando a casa, dizendo ele nela ou nele menino velhacaria, sendo estes candeeiros, veladores e castiçais, mas tudo é estar esperando ou buscando ocasiões de abusar aqueles pobres cristãos.
Item 22. Que a um menino de quatro anos, chamado Arquileu, filho de uma sua escrava, chamada Prudência, vigiando uma figueira os passarinhos não comessem os figos dela, e por achar um figo picado dos ditos passari-nhos, o açoitou com um chicote de açoitar cavalos, pondo-o nu, rigorosis-simamente pelas costas, pernas e todo o corpo, e principalmente pela bar-riga já com feridas tão idôneas (hediondas?) e feias, que senão fora uma sua mulata chamada Custódia, ama de sua casa, que desesperadamente veio de dentro, pegando no menino e o meteu entre as pernas, cobrindo-o com a saia, dizendo: também quero morrer mate-me a mim também, que depois de morta escusarei de ver tantas heresias que se fazem nesta casa sem temor de Deus e de sua Mãe Santíssima. Então sossegou o Mestre de Campo da-quela maldita fúria e barbaridade com que estava martirizando aquele po-bre cristão Anjinho, e senão, matava-o debaixo daquele chicote, porque já lhe tinha comido toda a pele do corpo, principalmente da barriga, que es-tava já tudo em carne viva. E ela olhando e vendo em seu filho aquela heresia e barbaridade, como estaria aquele coração atormentado e ago-niada! E assim se observa o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão com todos os meninos de sua casa, que vê-los das náde-gas metem compaixão. E se a mãe do filho que apanha mostra tristeza e sentimento, também vai ao suplício. E se o filho mostra tristeza e senti-mento da mãe que apanha, também vai ao suplício. E se o parente, que apanha, mostra tristeza, também apanha: hão de ver e presenciar, e andar alegres. Enfim, não digo nada ao muito que tinha que dizer.
Item 23. Que a um menino de oito ou nove anos, chamado Jerônimo, depois de o esbordoar com uma tábua, deixando-o quase morto, por não reservar lugar por onde lhe dava, o mandou açoitar rigorosamente que me-tia compaixão, mandando depois por-lhe uns grilhões nos pés e uma argola de ferro no pescoço, com hastes levantadas para Ihe por campainhas, e mandando furar-lhe os rejeitos dos pés e pelos buracos enfiar uma corda e pendurá-lo ficando com os pés para cima e a cabeça para baixo. E depois disto, o açoitou novamente rigorosissimamente que o deixou quase morto.
Item 24. Que a uma mulata chamada Maria do Rosário estando açoi-tando-a encima de um banco, supõe-se três ou quatro horas em açoites, que já não havia santo nem santa nem Paixão de Jesus Cristo, nem a Virgem Nossa Senhora, por quem ela chamava que a valesse, e por este respeito, mais acendidamente mandava que puxassem pelos açoites, gastando todo o tempo acima declarado que quase esteve a dita mulata blasfemando, pe-dindo ao diabo que a acudisse e a valesse, que era tanto o sangue que corria em regatos. E depois disto, a mandou logo no outro dia seguinte para uma sua malhada do tamanho quase do terreiro desta cidade, ou metade dele, mandando capinasse a dita mulata com as mãos, onde esteve todo dia ao sol sem comer no dito serviço, ficando por todos os dias arrancando vassou-rinhas e ervinhas e outras imundícies mais de ervas que se criam entre o capim, e sem comer, à chuva e ao sol, sem dali se arredar, comendo somente o que de salto apanhava das mãos das outras parceiras e parentes que por caridade lhe davam.
Item 25. Que a um escravo chamado Antônio Magro, contratando o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão com ele dar-lhe o seu valor, passar-Ihe carta de alforria, e depois que Ihe comeu a esta conta umas vacas e uns capados, galinhas e leitões, à conta do dito valor, a conta que lhe passou foi uma noite à senzala do dito negro, acompanhado com seis escravos, e mandando-o pegar uns pelas mãos, outros pelos pés, e ali o amarraram, tapando-lhe os olhos e a boca, derrubando-o no chão, lhe mandou botar à força uma ajuda (clister) de pimentas malaguetas com pito de preto e metendo ele o canudo a força, que tudo já levava pronto para o dito bene-fício ou carta de alforria, mandando o largassem depois disto. Que esteve à morte, sendo de idade de setenta para oitenta anos.
Item 26. Que a uma novilha prenhe de uma pobre parda, chamada Ana Maria, dizem ser irmã bastarda do dito Mestre de Campo, por vir ao seu curral junto com outro gado seu, por assim virem do pasto incorporados, a mandou pegar e amarrar, ficando-lhe as armas bem encostadas e arro-chadas em um mourão, e com fachos de fogo que mandou fazer, e mandou queimar toda pela barriga, peitos e partes venéreas, olhos e principalmente todo empenho da parte de baixo, que era de uma dor de coração, ver as heresias que mandou fazer àquele pobre animal, estando preso sem dali se poder escapulir, que ainda os Turcos não fariam semelhante barbaridade, só sim os Judeus. E não durou esta pobre novilha quinze dias, perdendo-a sua dona, que é o que ele queria.
Escravos da casa, que todos sabem:
José Pereira - Francisco Gago - Amaro - Geraldo - José - outro José - Bastião, sua mulher Teresa - Maria do Rosário - Páscoa - Maria crioula - Maria Pais - Custódia - Ana - outra Ana Marinha, sua afi-lhada - Rosaura - Francisca do Carmo - Manoel mulato - outro Ma-noel, dos pingos de cera derretida quente - José Mais - e outros mais escravos que todos sabem destas heresias.
Heresias ditas e feitas contra Deus Nosso Senhor e os Santos
Item 27. Que dizendo ao José Ferreira Vivas ao Mestre de Campo que Cristo Nosso Senhor havia padecido gravíssimos tormentos desde a hora de sua prisão até no final da hora de sua morte, crucificado em sua carne e que só um poder divino feito homem podia tolerar tão graves tormentos por nosso amor, para nos resgatar do cativeiro do Demônio, respondeu o dito Mestre de Campo, por sua própria boca estas formais palavras: "Que diz, homem? É verdade que morreu um Apóstolo, porém não se sabe quem era". Mostrando neste dito, pronunciado por sua própria boca, ser suspeito na fé, em não crer que Deus Nosso Senhor se fizera homem, para satisfazer por nossos pecados, sofrendo a pena de morte em seu corpo santificado, o que não pu-dera fazer se não se fizera homem.
Item 28. Que disse o dito Mestre de Campo ao Capitão Antônio Pamplona Vasconcelos: que se fora senhor de vinte Igrejas, fizera nessas vinte estrebarias de cava-los.
Item 29. Que tem o dito Mestre de Campo várias imagens de Santos e santas na sua casa, todos estercados de pombos, morcegos e outras imundícies mais, com pouco asseio e reverencia.
Item 30. Que queria o dito Mestre de Campo queimar um caixão com os ornamentos da Santíssima Madre de Deus, e por assim lho impedir um irmão, ou Manuel Baptista ou Florêncio Vieira, mandou botar o caixão da parte de fora da sua capela, para tudo o tempo consumir.
Item 31. Que disse o dito Mestre de Campo, que tomara já que o diabo lhe derrubasse a sua capela ou uma tempestade a botasse no chão e que quebrasse todos os santos e santas que nela estão.
Item 32. Que diz o dito Mestre de Campo que há de tomar todos os santos e san-tas da dita sua capela, e os há de meter dentro de um caixão e depois lhes há de mandar largar fogo, para os queimar a todos, e que a Capela há de fazer dela, (com o devido respeito), um chiqueiro de porcos, achando melhor patrimônio para a sua alma fazer da Igreja sagrada casa de cevados, do que dá-la ao Reverendo Vi-gário para fazer nela suas funções paroquiais e obséquio dos Santos.
Item 33. Que me disse o dito Mestre de Campo que se morrer nos caminhos do Sertão, que o enterrassem no mesmo lugar, sem cruz alguma, e que de nenhum modo o levassem a alguma igreja, nem mesmo a lugar sagrado, e que antes queria ser sambenitado por judeu, do que ser Mestre de Campo.
Item 34. Que disse o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão ao Capitão Luís de Varjão Brandão, que quando escrevia algumas cartas aos homens por sua própria letra, que cuidava muito nelas em judiar dos homens.
Item 35. Que disse o dito Mestre de Campo a José Francisco Vivas, que ele era judeu, e que quando conversava com os homens, cuidava muito na sua conversa em judiar deles.
Item 36. Que dando uma moça forra, chamada Benedita, da mesma casa, a um mulato, escravo de José Pires de Carvalho, uma Bula para nela lhe por o seu nome e pondo o dito mulato a bula aberta por cima de uma mesa, indo primeiro a certo serviço em casa, em cujo tempo passando acaso por ali o dito Mestre de Campo, e vendo a Bula em riba da mesa e o tinteiro junto, pegou na pena tirando tinta, pôs ou escreveu no lugar onde se põem os nomes (com o devido respeito) estas palavras MERDA - CAGALHÃO. E vindo depois o dito mulato, que pe-gando na Bula para lhe por o nome, e vendo aquela heresia, a mostrou a seu Senhor José Pires de Carvalho, que pedindo este uma tesoura, dizendo: Jesus, Jesus e cortou as ditas palavras. Testemunhas que assim sucedeu: o padre Brás Pereira Soares, a mesma Benedita dona da Bula, sua mãe Luzia Mendes, sua irmã Rosa Maria, Maria do Nascimento, Agostinho Dias, o mesmo José Pires seu cunhado, e outras muitas pessoas.
Item 37. Que tomou o dito Mestre de Campo uma imagem de um santo ou santa bento, que estava na sacristia da sua capela, e o meteu dentro de um cesto ve-lho, sem mais toalha por baixo, nem pano algum, mais que pondo a imagem dentro do cesto e cobrindo-a com uma folha de bananeira, assim a mandou levar à sua avó, Dona Ignácia de Araújo Pereira, em Jacuípe, três léguas distante de sua casa, que quando viram o cesto, entenderam seriam bananas, que posto o cesto no chão e vendo que era a imagem coberta por desprezo com folha de banana, logo Padre Brás Pereira Soares, Vedor e Procurador da dita Dona Ignácia, mandou com muita pressa retirar o cesto para dentro da casa, dizendo fôra bom não es-tar ali naquela ocasião pessoa de fora, por não presenciar aquela heresia.
Item 38. Que duas imagens que lhe ficaram, mandou ao sacristão Florêncio Vieira, na mesma ocasião, fizesse um buraco no chão na mesma sacristia, e os enterrasse, dizendo o dito sacristão que não fazia tal, ainda que o matasse; sempre mandou o dito Mestre de Campo que fizesse o buraco, que ele os enterraria, e fazendo o sacristão o buraco, ele os metera dentro, pegando um pelas pernas, outro pela cabecinha, e os lançava dentro, botando-lhe terra, (suponho) com os pés, ou se mandou botar, e socar. E se isto é assim ainda hão de estar enterrados, se a terra os não desfez na mesma sacristia, haverá nove ou dez anos, e quem pode depor esta mesma verdade, é a mesmo sacristão Florêncio Vieira, com que se passou esta heresia, o qual se acha morando com Dona Ignácia de Araújo Pereira, avó do dito Mestre de Campo.
Item 39. Que este caso, dizem, que o contou uma parda chamada Antônia Barbo-sa, casada com um Amaro dos Banhos, mora hoje esta em companhia de um Manoel Francisco dos Santos, morador no sítio dos Campos, na mesma Torre. E diz ela contando esta história a uma crioula chamada Clemência, forra, casada com João da Casta, preto forro, (pessoa de crédito, ainda que preto), por se mandar inquirir segunda vez da dita Antônia Barbosa, e disse ela por sua própria boca que morando em Monte Gordo, Freguesia de Santo Amaro do Ipitanga, passara da Torre este dito Sacristão Florêncio Vieira, por sua casa ao meio dia, onde entrou para descansar o sol, e que estando ele sentado lhe perguntara a dita Antônia Barbosa se ele já havia feito a sua capelinha, e que ele respondera que não queria fazer mais a capelinha, por vir fugindo daquele Judeu, que era o Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão , por ter enterrado dois santos na sacristia, contando a história que ele mandara o cesto coberto com as folhas de bananas e que os dois que haviam ficado lhe mandara fizesse um buraco e os enterrara, e pondo ele dúvida em tal fazer dizendo antes queria mor-rer, sempre o dito Mestre de Campo lhe mandou ou obrigou fizesse o buraco, que os enterraria e assim o fez, pegando um pelas perninhas, outro pela cabecinha, e os lançara dentro do buraco, lançando-lhe terra com os pés e este dito sacristão o poderá depor melhor, e com mais circunstâncias e a dita Antônia Barbosa é digna de se lhe dar crédito e não tinha fundamento para levantar semelhante balela, e falou nesta estória conversando com esta Clemência em tem-po de trovões, dizendo que tinha medo nesse tempo quando fazia trovões, não caísse aquela casa por ter feito o dono dela aquela heresia, e por aqui foi que se des-cobriu a que estava encoberto tantos anos.
Item 40. Que o dito Mestre de Campo, andando uns devotos correndo a Santa Via Sacra em uma Sexta Feira da Paixão, começou de sua casa, em lugar reservado, a apedrejar com pedras os ditos devotos, andando estes neste santo exercício.
Item 41. Que em outra ocasião, vindo o dito Mestre de Campo de cavalo encontrando com outros devotos, correndo a Via Sacra, meteu o cavalo entre eles, es-palhando uns aqui, outros por ali, que tudo espalhou e perturbou, a ali com medo dele se acabou o dito exercício.
Item 42. Que uma véspera de São João, ajudou uma Missa que dizia o Reverendo Padre Silvestre Carneiro de Sá, seu Capelão, em uma capela, e no deitar do vinho no último cibório, deixou o dito padre na galheta quanto lhe bastasse para cele-bração do Santo Sacrifício da Missa no dia seguinte de S. João para os seus apli-cados a ouvirem com sermão que naquele dia pretendia fazer. Que o dito Mestre de
Campo alcançando isto, foi maliciosamente à galheta e bebeu o vinho que nela ha-via, para o dia seguinte. E dando disto fé o sacristão Florêncio Vieira, lhe disse: Mas se meu Senhor bebe o vinho, amanhã o Padre não diz missa. Respondeu o dito Mestre de Campo: Amanhã a despenseira que dê vinho para a Missa, e de madru-gada partiu para o Monte Gordo, distância de três léguas, passando ordem à despenseira não desse vinho quando lho pedissem para a Missa, e se ela o desse, e se dissesse Missa com o seu vinho, que ela lho pagaria, e como ele não estava em casa, não se lhe pediu nem se disse a Missa, que é o que queria, pois com a mesma malícia bebeu o vinho da galheta. E chegando o Padre no dia seguinte de São João com todo o povo daquele lugar para ouvirem a Missa e sermão, e querendo o Padre vestir-se a horas para a dita celebração, foi o sacristão pedir o vinho à despenseira, a qual respondeu não havia vinho, confessando a ordem que Ihe deu seu Senhor, de que fez presente ao Padre. Isto foi sabido já perto das onze horas, ficando o povo amotinado contra o Padre, que se não tinha vinho lhes podia fazer saber cedo, para cada qual buscar Missa a tempo e horas, para não ficarem sem Missa no dito dia, que não houve desculpa do miserável Padre para ter admitida a sua verdade e tragédia do dito Mestre de Campo, com o dito povo e seus aplicados, e daqui procedeu correr o dito Mestre de Campo com o pobre Padre da dita sua capela e terra, por este ter com ele uma satisfação, pelo respeito do dito acima.
Item 43. Que tem o dito Mestre de Campo uma cabocla feita de barro, do ta-manho de dois ou três palmos, feita do tempo antigo dos seus antepassados, com a boca aberta e feia, com a língua de fora, e a pôs em uma cova que tem em uma parede como oratório, com uma vela acesa em um castiçal nos pés da dita figura, como se estivesse aos pés de algum santo, e ali a esteve adorando como se fosse alguma imagem de algum santo, o tempo que lhe pareceu, até tirar o castiçal com a vela, o que presenciou o Capitão do Mato Alexandre José.
Item 44. Que passando por varias moradores no mesmo lugar da Torre, de cavalo, com uma sua mulata nas ancas do cavalo, chamada Custodia, perguntou a um de seus moradores: Como se chamava uma coisa que tem dentro as partículas ou o Sacramen-to? Responderam que chamava-se Custódia. Disse então o Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão : Pois eu aqui levo a Custódia no cu do meu cavalo. Deste fato, poder-se-á lembrar Luzia Mendes ou sua filha, Dona Rosa Maria, Maria do Nascimento, Agostinho Dias, que eram todas moradores nesse mesmo lugar, e outras pessoas mais.
Item 45. Que indo certos mascates à presença do dito Mestre de Campo com várias imagens pequenas de verônicas, cruzes, crucifixos, e outras mais, pegou o dito Mestre de Campo em um feitio de um Menino Jesus e tendo-o nas mãos, o deixou cair no chão que o mesmo mascate o levantou, e havendo quem lhe perguntasse depois por que deixou cair das mãos o Menino Jesus, respondeu o dito Mestre de Campo: Ele não era Menino Jesus porque se deixou cair e não se deteve no ar. Esta tam-bém a presenciou o mesmo Capitão Alexandre José.
Item 46. Que tomou a Cabocla de barro acima dita, e a meteu em uma cama de colchão entre dois lençóis mui bem lavados, e mandou chamar o Padre Antônio Félix para vir a uma confissão, que chegando o dito Padre, mandou confessasse aquela enferma, e foi descobrindo o lençol, amostrando a dita Caboclinha, dizen-do: Aqui está a enferma confessa. E vendo o dito Padre aquela heresia, foi viran-do para trás, dizendo: Boas asneiras são estas, que com riso disfarçou o dito Mestre de Campo esta tratada como cousa que não tinha feito nada. Esta também a presenciou o Capitão Alexandre José.
Item 47. Passando em sua casa o dito Mestre de Campo, por uma casinha ou camarinha de cima, e tendo uma imagem no chão (suponho) de Senhora Santana, naquele passar pela imagem pela pressa com que ia, pegou o timão na santa em alguma coisa que ficasse pegado, virou com uma fúria e raiva para trás, e deu tal coice na santa, que atirou com ela deitada no chão, e assim a deixou, seguindo para diante ao intento com que ia, sem fazer mais caso de a levantar e a reve-renciar.
TESTEMUNHAS REFERIDAS:
Luiz Mendes - Cosma Pereira de Carvalho - Maria do Nascimento e seu marido João Baptista - Ana sua filha - Agostinha Dias - Rosa Maria de Jesus - Filha de Luzia Mendes - Benedita Vieira, sua irmã - Clemêncio mestiço - Teresa Mestiça e sua irmã - Mariana Vieira - Sua filha Ana Maria - Ana Maria passageira da passagem da Pojuca - Antônio Ta-vares, sua mulher Marceliana - José Fogaça - Florência sua mulher -Margarida, irmã da dita Florência - Teresa de tal, mãe de Manuel, pai de Rosa Maria de Jesus - Mulher do filho de Luiz Alvares - Felipa Pereira -Manuel Alexandre seu neto - Margarida Ferreira - Maria da Cruz -Joana de tal, no sítio da Pinguela - Maria Aranha, sua filha - Leandra de Freitas - Isabel de tal, sua mãe Leonor, moradores na Praia da Torre - -Francisco Tavares - Luís da Costa, sua mulher Felícia de tal - o Padre Brás Pereira Soares.
Este fez: JOSÉ FERREIRA VIVAS"
(Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo n° 16.687)
A fim de auxiliar na reconstituição do interior, dos espaços, objetos, móveis, pessoas, eventos, redes de relação e do quotidiano da famigerada Casa da Torre da Bahia, enumero e esclareço algumas informações etnográficas referidas neste documento que permitem-nos visualizar parte do "recheio" desta propriedade e aspectos cruciais da vida privada de seus proprietários, escravos e agregados nos meados do Século XVIII:
I. Espaços da propriedade rural
· capela
· curral
· "malhada do tamanho quase do terreiro desta cidade ou metade dele". Malhada: "lugar de uma plantação de capim de corte"
· pasto
· sacristia
· senzala
II. Cômodos e detalhes arquitetônicos
· casinha ou camarinha de cima
· "cova em uma parede como oratório": nicho
· prisão
III. Móveis
· banco,
· banquinho
· "cama de colchão entre dois lençóis mui bem lavados"
· cama de vento
IV. Objetos do lar e utensílios
· caixão
· cesto
· cocos de água: "vasilha feita do endocarpo do coco-da-baía ou folha-de-flandres, no qual se embebe, perto da boca, um cabo torneado e serve para tirar a água dos potes"
· colher de prata
· livros
· mesa
· pena de escrever
· rede
· tacho de doce
· tesoura
· tinteiro
V. Iluminação e combustão:
· candeeiros
· candeia
· castiçais
· fogareiro de brasas
· vela
· veladores: "suporte vertical de madeira, que assenta em uma base ou pé e termina, no alto, por um disco onde se põe um candeeiro ou uma vela"
VI. Imagens
· "Caboclinha: uma cabocla feita de barro, do ta-manho de dois ou três palmos, feita do tempo antigo dos seus antepassados, com a boca aberta e feia, com a língua de fora"
· Várias imagens de santos e santas
VII. Ferramentas e instrumentos
· corrente de guindar pedras ou caixas de açúcar
· escada de madeira
· turquesa grande de sapateiro
· uma arroba de bronze
VIII. Alimentos e plantas
· figos
· pimentas malaguetas
· pito de preto
· doce
· vinho
IX. Instrumentos de tortura
· Anjinhos: "anéis ferro com que se prendiam e apertavam os dedos de escravos e criminosos"
· argolas de ferro: para prender a cabeça ou membros dos escravos, com suas cordas
· cavalo de pau: espécie de cavalete onde se descansavam as selas e arreios das cavalgaduras, utilizado como uma espécie de "pau de arara" para chicotear escravos
· chicote de açoitar cavalos: usado para flagelar escravos
· "ferro de pescoço, com duas vergas levantadas, em alto, que teriam mais de palmo e meio, e em cada uma delas uma campainha e uma corrente muito grossa no pé, passando duas voltas pela cintura do escravo, indo a ponta dela atar às campainhas"
· grilhões: para prender os pés
· jibóias: corrente que se atracava na cintura e pescoço do escravo
· palmatória de pau
· "pauzinho do ta-manho de um palmo, pouco mais ou menos, com uma ponta"" usado para pinicar as escravas
· rabo do peixe arraia: usado como chicote para açoitar escravos
· turquesa grande de sapateiro: usada como objeto de tortura para arrancar mechas de cabelo dos escravos
· papagaio: "pequena pasta de algodão que se coloca ao pé Oou em outra parte do corpo) de quem dorme e à qual, por brincadeira, [ou como tortura] se ateia fogo"
X. Medicina
· "ajuda": clister para lavagem intestinal
· ventosas com algodão para tirar umidade
XI. Celebrações
· dança de escravas
· desobriga da quaresma
· missa de São João na capela da casa da torre
· procissão da Via Sacra na sexta feira da paixão
XII. Personagens e tipos sociais
· ama de casa
· afilhadas de batismo
· rabequista
· capitão do mato
· despenseira
· irmã bastarda
· foreiro
· compadre
· mascates que vendem imagens, verônicas, cruzes, crucifixos
· padre
· capelão
· sacristão
XIII. Animais
· cachorros
· capados
· cavalo
· galinhas
· leitões
· novilha
· "onça presa em uma corrente em um cepo, numa casinha"
· vacas
NOTAS
1.Parte desse texto encontra-se publicado in Mott, Luiz: "Terror na Casa da Torre: Tortura de escravos na Bahia Colonial", in J.J.Reis (org.), Escravidão e Invenção d Liberdade. S.Paulo, Editora Brasiliense, 1988, p.18-32
Bibliografia:
Calmon, Pedro: História da Casa da Torre. Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1984 (1a Edição, 1940)
Mott, Luiz: "Terror na Casa da Torre: Tortura de escravos na Bahia Colonial", in J.J.Reis (org.), Escravidão e Invenção da Liberdade. S.Paulo, Editora Brasiliense, 1988, p.18-32
Um comentário:
Que a sombra de nossa história não seja jamais esquecida por ninguem. Absurdo como a maldade de muitos seres humanos nos sujam a alma e nos inundam de vergonha!!! Extremamente necessário todos estes documentos
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