sábado, 9 de outubro de 2010

PAPOINFORMAL Solidário com a Roça do Ventura.

Foto: A Tarde.

"Iphan barra construção em área de terreiro em Cachoeira

Cristina Santos Pita, do A TARDE

Sítio ecológico e santuário religioso de matriz africana da nação jêje marrin e um dos mais antigos terreiros de candomblé da Bahia, a Roça de Ventura, como é conhecido o terreiro Zô Ôgodô Bogum Malê Seja Hundê, da cidade de Cachoeira (a 110 km de Salvador), no Recôncavo baiano, está sendo ameaçado pela especulação imobiliária. Segundo denúncias de entidades ligadas ao culto afro e do povo-de-santo de Cachoeira, parte da área da Roça de Cima, que deu origem ao tradicional terreiro, está sendo desmatada para dar lugar à construção de um loteamento residencial. Para os religiosos, embora esteja numa área particular, a Roça de Cima, onde os mais antigos faziam celebrações, é uma área considerada sagrada e por isso deve ser preservada.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) enviou técnicos ao local e notificou o proprietário da Fazenda Altamira, o advogado Ademir Passos, que paralisou as obras do loteamento. Fiscais do Ibama também vistoriaram a área no último sábado, dia 2, mas ainda não foi divulgado relatório sobre possíveis crimes ambientais. O Seja Hundê está em processo de tombamento pelo Iphan desde 2008 e é um dos mais importantes terreiros de candomblé do País.

A demolição parcial da Roça de Cima, que faz parte da Fazenda Altamira, começou no último fim de semana e provocou uma série de protestos dentro e fora da comunidade do povo-de-santo. “Os donos sempre permitiram que se fizessem as obrigações na Roça de Cima há mais de 50 anos. Foi o primeiro candomblé que deu origem ao da Roça de Baixo, que existe desde 1878, quando Ludovina Pessoa abriu para a filha dela, Maria Luiza do Sacramento, aí todo mundo passou para o terreiro de baixo, para não separar os jêjes”, explicou Edvaldo de Jesus Conceição, ogã Buda, líder religioso do Roça do Ventura.

Na Roça de Cima, uma área de 12 hectares que pertence à Fazenda Altamira, localizada na Ladeira da Cadeia, não há construções de alvenaria, há algumas árvores no seu entorno e os assentamentos sagrados, onde ainda são feitas as obrigações ao ar livre. Os zeladores do terreiro alegam que várias árvores centenárias e sagradas no culto aos voduns foram arrancadas pelas máquinas. “Foram derrubadas ubaúba, jaqueira, são-gonçalinho, mangueira, sucupira e olicuri, além do aterramento da Lagoa de Nanã, também sagrada. Nós cultivamos as árvores que são consagradas aos orixás”, destacou Buda.

A Fazenda Altamira foi vendida há oito anos ao advogado Ademir de Oliveira Passos, que nega a derrubada de qualquer tipo de árvore do local. Segundo o advogado, a área é de capoeira, com vegetação rasteira e algumas árvores no seu entorno. “A área que eles alegam pertencer ao terreiro, na verdade, me pertence. Comprei a Fazenda Altamira de Antônio Brandão Costa por R$ 110 mil. Vou construir um loteamento com 120 casas numa área que é de pasto, não é mata e nem restinga. A Roça de Ventura está a cerca de 300 metros do local, onde eles celebram os rituais, fora dos limites da propriedade, que possui cadeia sucessória há mais de cem anos’, afirmou."

In: A Tarde
http://www.atarde.com.br/cidades/noticia.jsf?id=5633055

Dois Anos de Hwendo Mag.

Foto: Bokonon Dah Azondékon (Aklankpa) in Hwendo Mag. Profundo conhecedor das ervas.

"Editorial: A festa foi simplesmente linda!

Anunciamos, há algumas semanas, que o seu jornal favorito "Hwendo Mag" acaba de celebrar dois anos oficialmente no mundo da imprensa Benin. Ele nunca vai deixar de dizer, a imprensa cultural é um mundo sem juros. Mas ainda estamos convencidos de que um dia isso vai mudar, porque sem cultura, nenhum desenvolvimento pode ser possível. Eu estava falando sobre os dois anos de sucesso do jornal Hwendo. Na verdade, estes dois anos foram o resultado de um longo tempo de trabalho duro entre nós e os nossos leitores. Muitos são conhecidos por nós e nos dão conselhos de qualidade. Eles são os nossos motivos para acreditar sempre em um certo sucesso. Além destes, os nossos irmãos que estão tentando de alguma forma e com todos os problemas entram em contato conosco para nos encorajar. Tudo isso é porque temos a vontade de fazer. Nós nunca pensamos por um momento que as pessoas da mídia fossem tão unidas. Uma enorme multidão de compatriotas esteve presente na celebração. E como o nosso jornal tem se especializado em cultura, música, artes, também coroou chefes de partido. A aposta está ganha para mim e minha equipe sempre pronta para continuar essa luta sem fim. "Hwendo Mag", escreveu as mais belas páginas de sua história. Assim, dizemos: Era uma vez... Dois anos de Hwendo Mag! Não é fácil ser uma revista cultural na República do Benin, mas é sempre bom quando você tem sucesso em seu campo e você é considerado um membro influente no seu universo. 22 de maio, já é história, temos agora de pensar no futuro. A preocupação imediata é o nosso primeiro jornal ser estendido ao redor do mundo, com estes com que acabamos de assinar um contrato, a Comunicação Dekart, que agora assumirá todas as nossas informações na Internet. Além disso, o jornal está presente em Ouidah, bem como no Brasil. Cada edição, é lida por mais de 85 estruturas públicas e privadas de Cotonou e de outros locais. Nós vamos cobrir todos do Benim e da África. Em suma, nosso objetivo é permanecer gravado no coração de cada consciência beninense do desenvolvimento endógeno de sua cultura. A fim de atendê-lo ainda mais, vamos projetar temas muito cativantes e muito educativos. Tão logo você terá temas como "exemplo" que irão levantar o véu de sobre os líderes políticos, culturais e esportivos. "Retrato", que será para a descoberta de Hounnons, dahs, e de reis do Benim e de outros lugares. Hoje, queremos reforçar a nossa meta: Sermos os mais endógenos do showbiz. Mas para obter sucesso, precisamos do apoio de todos vocês. Hwendo Mag é o seu jornal.
Eu não vou terminar este editorial sem agradecer, mais uma vez aos meus colegas com quem eu trabalho todos os dias e acreditam em mim e na vontade de ir mais longe na salvaguarda do nosso patrimônio cultural e adorado. Com estas palavras, caros leitores eu digo tudo ...

Constantino B. NOBIME"


In Hwendo Magazine

Parabéns Hwendomag! Temos orgulho de participar desta revista.
Ifabimi.

domingo, 19 de setembro de 2010

Noz-de-Cobra.


Arbusto pertencente ao vodum Dàn.
O arbusto africano de linda floração amarela é muito tóxico e tem sua casca, folhas, e raiz utilizadas no tratamento de doenças cardíacas, possuindo propriedades cardiotônicas. Seu fruto é muito venenoso. Possui uma resina leitosa rica em Cerebrina, Nerifolina, Teveresina e Tevetina. Comumente encontramos na África e no Brasil esta bela planta ornamental conhecida pelos nomes de chapéu-de-napoleão, jorro-jorro, noz-de-cobra, cerbera, aoaimirim, auaí-guaçú, bolsa-de-pastor, louro-amarelo, noz-da-sorte, ou eleander-amarela.
Na Costa do Marfim e no Benin a seiva das folhas é usada em gotas para o nariz curando a dor de cabeça violenta, a seiva das folhas nas narinas é também usada para reanimar pessoas que desmaiam e curar resfriados. A semente da noz-de-cobra (Thevetia linearis, Thevetia neriifolia, Thevetia thevetia) é um veneno de contato, quando amassadas e misturadas à uma solução de sabão são usadas como inseticida.

Fontes:
Revista Tropicultura n° 26 vol. 3 (1988)
http://livingfarmacy.wordpress.com/herb-identification/beautiful-but-dangerous/

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Oração Mina








Oração do Diálogo Inter-religioso do Benin em 2008. (Língua Mina).






Agoo, amin! (Com Licença, amém!)


Mi le kafu mi Mawu, jinukusi kuɖo ayingbanɖotɔ.


Oh! Deus todo poderoso e criador do céu e da terra, nós te louvamos.


Mi le kafu mi Mawu agbeaɖotɔ.


Oh! Deus todo poderoso e mestre do universo, nós te glorificamos.


Mi le ja avalu mi Vodun Yɛwe ka voɖeka wo kɛun kɛn kɛn.


Nós saudamos a vós todas 41 entidades divinas do Vodun Yɛwe.


Mi le yɔ mi Vodun Gu, Sakpata, Xɛbioso kudo Vodun ke mi jesi o gba kudo ede ke mi un jesi kpata.


Nós vos invocamos Vodun Gu, Sakpata, Xɛbioso e a todos os voduns que conhecemos ou não.


Mi le yɔ mi Vodun Ginyɛhwe woo kɛun kɛn kɛn.


Nós imploramos as mãos do Vodun Ginyɛhwe.


Mi le yɔ mi Ata Kpesu, Ata Adjigo, Ata Sakuma ku do ke mi ɖo hun wo gbakudo ke mi hun ɖo hun ɖo hun woa.


Nós imploramos as mãos de Ata Kpesu, Ata Adjigo, Ata Sakuma, também dos nossos protetores e os de todos.


Mi le yɔ mi Vodun Dan wo kpata,


Nós imploramos as mãos do vodun Dan


Mi le yɔ mi Nana Sika, Sika jɛnɔ, Sika avɔnɔ, Sika dɔkunnɔ.


Nós imploramos à Nana Sika, Sika Jɛnɔ, Sika Avɔnɔ, Sika Dɔkunnɔ.


Mi le yɔ mi Ata N’Desu kata bia,


Nós imploramos a Ata N'Desu,


Mi le yɔ mi Dan Ayiɖohwɛɖo kudo Vodun Dan ke mi ɖo wun wo gbakudi ke mi hun ɖo wun woo.


Nós imploramos ao vodun Dan Ayidohwɛdo com todas aquelas que conhecemos ou não.


Mi le yɔ mi Togbe wo, Mama wo, Tasinɔ wo kɛun kɛn kɛn,


Nós imploramos as mãos dos antepassados, as mãos de Mama, as mãos de Tasinɔ,


Mi wun gba sɔ eku sɔ kan agbe n’ɛ mi, mi wun sɔ agbe sɔ kan ku n’ɛ mi woo,
Faafa biɔ mi le.

Nós não estamos pedindo para substituir a vida morta, nem a vida para substituir os mortos. Pedimos
pela paz.


Bɔbɔ ke mi le ji la wɔ a, mi sɔ ɖo mi be ata mɛ, n’ɛ mi n’ɛ mi la do acɛ eji, n’ɛ zɔnzɔn kuɖo vuɛn le ji la ɖo exɔ ya mɛ, mi a tu agbo wo ɖo wo.
Nɛ mi wun agbo nɛ faafa kudo ennyuɛn ke la kplɔ bɔbɔ ya yi nuko a.
Kuefan ke le mi le fan n’ɛ mi eyeun.
Mi a tu faafa ɖo mi a ji nɛ ba nyi jijɔɛ nɛ amɛsiamɛ le xɔ ya mɛ, le bɔbɔ ya be te pe.
Ezo ma ɖia, ezo be wun kpɛ ye loo.

Nós colocamos essa reunião sob a vossa proteção e pedimos sua bênção para que tenha lugar em paz, harmonia, e que leve às conclusões felizes e benéficas para a construção do nosso país, o Benim e a África, nosso continente. Ouçam nossas orações.






Yawoo! Yawoo! Yawoo!


Que assim seja! Que assim seja! Que assim seja!










Tradução: Ifabimi.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Rituais do Nascimento Fon.


Os rituais que envolvem o nascimento de uma criança no Benin são muito variados, porém não são muito complexos, e variam de acordo com o grupo étnico que concebe o nascituro, sem contudo, que varie a essência dos mesmos, assim para termos ideia tomamos por base o povo Fon.
A criança é concebida no seio da família, geralmente no lar, onde são preceituados tais ritos. Os primeiros rituais envolvem a participação de membros da família e/ou de parentes, já a cerimônia final é exercida pelo sacerdote do Fá (Ifá).

Ohondudu- É a aplicação de manteiga de karité no cordão umbilical da criança, com o objetivo de secar devidamente e também ser emoliente, é geralmente preceituado uma tia paterna do pai do bebê e acontece ao terceiro dia de nascimento da criança;

Jedudu/ Jenunu- Tem lugar na madrugada seguinte ao dia em que o cordão umbilical da criança, então seco, cai. Nesta cerimônia a mãe volta a consumir do sal e lhe é feito um oferecimento de feijão com salgados, sodabi, milho, várias bebidas, noz de palma, peixe frito no dendê, etc. A tia vem e após todos comerem do peixe e beberem, entrega a mãe uma enxada e a mesma cultivará os grãos que lhe foram oferecidos e que deverão ser bem tratados, pois simbolizam votos de boa sorte sendo a primeira semeadura na vida do recém-nascido;

Sunkunkun- Este rito significa a bênção da lua para a criança é ;realizado no primeiro dia de lua nova a noite e repetido no segundo dia. Um menino, em troca de alguma soma em dinheiro, assobia 41 vezes em uma garrafa vazia, a criança é mostrada a primeira lua nova após o Jedudu em um Medjo (primeiro dia do Fezan) e no Meku (segundo dia) em honra aos seus antepassados, a garrafa permanecerá em seu quarto e a mãe receberá revelações da ancestralidade acerca de seu bebê, através de seus sonhos;

Vidinkpon- de “Ovi Vin Dinkpon” que significa “Reencarnação”. É a última cerimônia de nascimento, nela é consultado o Fá pelo sacerdote. Aqui os pais saberão se é um espírito da família que reencarnou, se é um Abiku (aquele que vem e promete voltar ainda na infância à sua floresta, o Abikuzun, etc.
Aqui podem ser indicados preceitos e mesmo o preparo de fetiches que deverão ser reverenciados por toda a vida da criança, há também a confirmação de sua ancestralidade e de seu primeiro nome.

sábado, 24 de julho de 2010

O Culto Real dos Mortos

Assen (Assem) do Rei Akaba - Exposto no Museu Histórico de Abomey.


Reis Defuntos e suas famílias. Culto Real dos Mortos.

"Ritos Fúnebres"

Os vários ritos funerários por ocasião da morte deve permitir deixar sua concha para
integrar o mundo biológico dos mortos.
Na primeira fase do funeral, o corpo está preparado para o enterro. A família presta
homenagem aos mortos como sinal de submissão e de luto, ela arcos, beija a terra e
cobre a cabeça com a terra.
O morto é enterrado com alguns objetos para não ser impotente em sua nova vida como o mundo dos mortos é organizado como o da vida e uma delas. Parentes oferecem serviços diversos (roupas, colares, etc.). Para cada um deles, o nome do doador é proclamado por um arauto. Então, um tiro é disparado. As doações, oferendas, são divididas em três partes. A primeira será enterrado no túmulo, a segunda será partilhada entre as crianças, o resto será para os mestres de cerimônias.
Nos funerais reais, nós adicionamos as doações algumas regalias: espreguiçadeiras,
guarda-chuvas do pátio, guarda-sol e cadeiras pequenas ...
Anteriormente, algumas esposas do rei seguiam o falecido em sua tumba para não perder seus atributos, seu poder e status na vida após a morte.
Tambores sato (sató) participam nesta parte visível do mundo invisível. A orquestra sato uma vez por ano vem para homenagear os mortos da aldeia do ano anterior. Os filhos batem os tambores sato “dos mortos” usando curvas varas. Estes cilindros são em pares, um macho, uma fêmea de cada adornada com atributos sexuais. Enquanto os tambores cantam, mulheres velhas cobertas de lama, usando colares de ráfia, assumem o papel de viúvas. Elas vão para a fonte sagrada yatonou (yató-nu) para purificar-se (eles lavam a lama) e adiam a morte e as maldições.
O falecido não recebe os ritos fúnebres e não se realiza a fase de "separação" pode
passear e assombrar os vivos.
A próxima fase tem como objetivo recriar a sua identidade e é transformada em
antepassado. Este novo status vai permitir aos mortos participarem na vida da
comunidade e serem vistos como guardiões da tradição. A transformação dos ancestrais
mortos se materializa na construção de um altar memorial chamado Assen.
A caixa dos antepassados está no meio da composição familiar. Os “antepassados” são
representados pelo Assen, guarda-chuvas em forma de ferro decorado com figuras. O
tanyinon, a sacerdotisa da família, é responsável pelas orações e ofertas. São libações de água e de óleo de palma (azeite-de-dendê).
Na cerimônia para homenagear os antepassados da família, os assens são transportados
para a casa de orações e empurrados para o chão por ordem de precedência. O clero
proclama então, sucessivamente, os nomes dos antepassados e os elogios que o
acompanham. Eles atualizam a presença dos mortos, dando-lhes bebidas alcoólicas e a
comer do inhame e da mandioca. O sangue é o presente final, porquê tem uma força vital que passa a morte da vida animal e transfere para o ancestral. Os números nos altares portáteis caracterizam a vida do falecido, como os feitos que marcaram a sua existência e as restrições alimentares.
Na família real de Abomey, as princesas cantam os louvores dos reis mortos, lembrando seus feitos de glória e exaltam o seu poder. Da mesma forma, o tocador do gongo, chamado kpanlingan, cantando as ladainhas dirigidas aos antepassados reais. Ele taxas a genealogia dos reis no som de um sino que atinge um casal de paus. Totalmente dedicado a essa tarefa, o tocador do gongo canta três vezes por dia este recitativo que dure mais de meia hora. Anteriormente, acontecia que quando o kpanlingan esquecia uma palavra, ele era imediatamente decapitado, o que demonstrava a importância de tal função: analisar a evolução do reino e da cronologia dos reis, kpanlingan, memória do país, o papel do historiador.
Ao contrário dos antepassados da família que se mantêm no âmbito da concessão da
linhagem, os mortos são reverenciados real por toda a população em geral, festas
comemorativas.Voduns Reais, que se dividem em três categorias:

Ahossou (Ahossu)- que correspondem aos reis antigos mortos;

Nessouhoué (Nessuhuê)- príncipes e princesas mortos;

Tohossou (Tohossu) as crianças anormais mortas.

Imediatamente após o culto de ahossu, os reis antigos, honram-se os tohossus, voduns
da água. As crianças que nasceram deformadas estão sujeitas a um culto especial,
porque elas são uma manifestação divina dos reis das águas. Cada rei tem um ou mais
tohossus, mas dentre os tohossus Zomadonou (Zomadonu) é o mais importante. Vodum infantil monstruoso do rei Akaba, se manifestou em várias formas, por vezes, assumindo a aparência de uma criatura com seis olhos, às vezes de um pássaro grande consumindo peixe.
As cerimónias de homenagem aos tohossus são os últimos vinte e quatro dias. As
sacerdotisas regressaram ao seu convento, três meses antes do início das
comemorações, que representam o tohossu nessuhuê, tohossu real, e acompanhados
pelos príncipes e princesas, agrupados por famílias de falecidos reis sucessivos. O
nessuhuê, tohossu e os ornamentos estão em cerimônia que acompanham vários
números diferentes de dança. Danças de todas as danças individuais seguem como os
botrotro dançados durante a cerimônia na qual o nessuhue, de espada na mão, vestindo
as roupas dos príncipes de outrora, em passos de dança reservada para os reis e
príncipes mostra sua força, bravura e real invulnerabilidade. É tempo de dançar, principes antepassados vão incorporar em ambos os seguidores do sexo masculino ou feminino.
Os cultos vodum em público, ou como os de Sakpatá e Hebiosso, são celebrados após o
culto dos tohossus e nessuhuês. Ao colocar os espíritos do panteão vodum sob a
supervisão do culto real, os reis de Abomey tinham reforçada a sua autoridade. Estas
grandes cerimônias comemorativas foram feitas para o falecido e se destinam, no devido respeito aos antepassados, para manter a coesão social e poder religioso para fazer o poder real.

Fonte:
Flora Cornelup; Hervé Corneloup.
Museu Albert Kahn, Paris.

Link para Leitura:
http://papoinformalpapoinformal.blogspot.com/2010/03/gnidji.html

Obs.

Nas festividades dos tohossus é sacrificado um boi, ao qual o tohossu apontando-o com uma espada indica a hora do sacrifício, são efetuadas danças nas quais em uma delas o tohossu Zomadonu dança ao lado da princesa Dan Yá Edo, que segundo a lenda o achou em um pântano e o criou. O tohossu é identificado pelo número de búzios em seu chapéu, que no caso de Zomadonu são 6, já para Akpelou (Akpelu) e Adomou (Adomu) são 4.

Um fato interessante no Candomblé é que dizemos "assentar um santo", e isto é devido a utilização do assen oriundo do culto dos mortos, e muito embora o assentar candomblezeiro de origem Jeje e que ficou difundido nada tem a ver com culto dos mortos, ainda mais se tratando de tradição Jeje Mahi onde eles não são cultuados, porém, os antepassados recebem reverência exclamativa no cerimonial do Zandró.

Extraído do Curso de Cultura Vodún PAPOINFORMAL.
Contato:
Aklonbe@gmail.com

Pai Dancy entrevistado no Jornal Hwendo 2

Foto: Pai Dancy a frente conduzindo o homenageado Pai Zezinho da Boa Viagem, filho do saudoso Tata Fomutinho.

Como foi mencionado anteriormente em postagem anterior por este blog, Pai Dancy (Estado de São Paulo), grande defensor do culto, um líder atuante contra a discriminação religiosa aos cultos afro-brasileiros, concedeu uma pequena entrevista ao Jornal Hwendo (Cotonou, Benin) do Culto Vodún tradicional, o texto original, embora sem as belas fotos que estão publicadas jornal, está em francês do Benin e agora pode ser visualizado pela internet porquê foi publicado no Blog HwendoMag do jornal, uma boa opção para quem está distante e não tem acesso imediato as tiragens editoriais do mesmo.


Abaixo está o link de acesso para a entrevista de Pai Dancy:


http://hwendomag.afrikblog.com/archives/2010/07/09/18542558.html

sábado, 3 de julho de 2010

Os Filhos do Sol.


(Lenda Fon)

Em uma contenda, Gbe Yeku pediu a lua que iluminasse todos os seus filhos (as estrelas), mas exceto um -a estrela-do-mar- para induzir o sol que a tudo procurava iluminar ao erro, então ele jogaria alguns dos seus filhos no mar, já que observaria que ali também haviam estrelas. Assim foi feito. Posteriormente, percebendo o engano, o sol pôs o rosto na água para recuperar a sua ninhada. O primeiro o viu piscou, reluziu, moveu-se e depois morreu, o segundo também não vingou por muito tempo, então, para que não morressem mais dos seus filhos Olonfin permitiu que o sol também brilhasse sobre o mar atravessando a água com seus ráios penetrantes, pois lá estavam seus filhos -os peixes- (hwevi, filho do sol em Fongbè, a língua mais falada no sul do Benin, hwe= sol + vi= criança) e os filhos da lua são as estrelas, que continuam brilhando no firmamento. Assim os filhos do sol que outrora residiam no firmamento iluminados pelo sol, passaram a residir na água e assistidos pelo sol.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Floresta, Espaço Multiuso ou Padrões Tradicionais de Gestão?

Felinos, animais sagrados desde o Egito Antigo e Núbia. Leão, gato e pantera.

"No Centro do Benin, os vários componentes do ambiente são percebidos conscientemente ou inconscientemente, num ângulo cosmogônico por sociedades rurais: A “terra ", que prevê a fertilidade e poder é vista como uma divindade feminina, o céu, mais distante, e tendo a chuva fecunda, é considerado um deus do sexo masculino (O vodun Mahi Hevioso). O iroko (Milicia excelsa) ou Lokovodun chamado por Mahis e Fons, ou loko, o fetiche árvore, "Rei das Árvores" pode ser, dependendo da sua forma, um intermediário entre duas divindades principais, tais como o céu e a terra. Quando as árvores são agrupadas em blocos de floresta, tornam-se o domínio dos espíritos da floresta, benéficos ou maléficos, e onde alguns animais silvestres também desempenham papéis. Há também o acontecer de certos acordos entre homens e espíritos dos antepassados (em vez de iniciação). Considerados como elementos divino, o espaço e o seu conteúdo (solo, árvores, água) não são apropriados por um único indivíduo. O espaço é um patrimônio pertencente aos antepassados (ou em mahi: Hinnu), que têm confiado a seus descendentes que ainda vivem na Terra. Como tal, o chefe da terra, ou Hinnugan, não pode afastar definitivamente o patrimônio em benefício de terceiro indivíduo ou coletivo. Em praticamente todas as tradições nagôs e mahi do Benin Central, a concessão de um direito de utilização de uma área de floresta, geralmente concedido àqueles que assim o solicitar, é acompanhada por diversas proibições sobre determinadas árvores e solo. O espaço é um todo, que inclui terras agrícolas e áreas florestais.

A floresta é uma representação etno-mitológica, que abriga o panteão de deuses que protegem a vila. Seus totens e representações materiais são variados: a pantera, o antílope. Animais e plantas se tornam totens venerados, bem como a floresta (há dias específicos para ir na floresta). Nas florestas, alguns líderes tradicionais foram empossados, este é o lugar onde os ancestrais tiveram instalados deuses protetores quando escolheram a terra que se tornou a casa da aldeia. Assim, as florestas estão sob a autoridade do chefe da tribo ou de um descendente do primeiro ocupante das aldeias. É ele quem deve pedir a permissão de qualquer taxa. Ele introduz uma legislação para proibir o corte de árvores, exceto para fins públicos: a construção de
escolas, farmácias, canoas. As montanhas costeiras rurais Kouffé, assim, tem uma noção da importância das florestas e desenvolve seus próprios padrões de gestão ou de proteção que muitas vezes não colidam com os estabelecidos por lei. Uma questão subjacente a perguntar é: Será que estas representações para que as normas possam ser aplicadas a todos os grupos de usuários que são indígenas; assentados da agricultura; os agricultores sedentários; pastores transumantes; os comerciantes de lenha; comerciantes de carvão; madeireiros, conhecidos como serradores, o homem associa? Com efeito, o Código Florestal é insuficiente para captar as relações na civilização agrária, a terra, unir o povo da aldeia, os habitantes de um território. A classificação legal da terra não teve em conta a dimensão espiritual dos relacionamentos humanos e "o poli-consumo" do espaço, tendo sido desenvolvido principalmente por parte do Estado e seus súditos individuais.

Estas comunidades locais devem adotar normas e direitos, e como tal, ato legal de produção, mesmo que não esteja codificado em procedimentos escritos. Esta produção pode servir como base jurídica quando, em projetos de reforma agrária, será posto em confronto e em seguida, vincular a norma legal do Estado e a comunidade jurídica. Com efeito, a análise de diferentes abordagens para a proteção da fauna e flora, a ausência de mudanças na legislação no sentido de adaptação ao local de normas sócio-econômico e da integração de povos tradicionais leva a ver nessas medidas, como forma de privá-los da vida que eles têm.

O direito secular fez da terra e da área florestal de propriedade de empregados e empresas, individuais e igualitários, privatizando as relações entre indivíduos, ignorando a relação hierárquica de dependência e solidariedade da comunidade em diferentes grupos estratégicos que existem na sociedade global. A legislação florestal não fala das tradições do passado, como se tivessem deixado de existir, quer no presente, como se, tendo sempre existido, elas não foram alteradas. A racionalidade técnica ocidental rompe o fio que conecta povos com as suas tradições.

Contudo, deve mencionar a introdução do dinheiro, tecnologias para atender a uma economia de mercado, o desenvolvimento da exportação de produtos agrícolas especulativos, transforma o valor de uso da terra no valor de troca. E o produto de bens de subsistência?

Países com florestas:
O espaço mahi ou nagô participa no sistema de relações sociais e de produção para os direitos de terras agrícolas e florestais, são uma função da posição ocupada pelos indivíduos em organizações sociais, políticas, econômicas e religiosas. O estatuto da terra ou floresta conota as áreas tais dos indivíduos, ao passo que na concepção ocidental, a pessoa é apreendida em sua unidade individual e autônoma.

À nível místico, o tomar posse de terras devolutas é acompanhado de um ritual de fundação, onde o primeiro colono deve obter o acordo dos poderes espirituais que residem lá. Ele reconhece os contratos de devedor para com eles, uma dívida de gratidão em todos os aspectos, comparável ao do marido que incorre vis-à-vis a seus pais durante o pacto do casamento. A ligação vital entre o estabelecido e inseparável é o pioneiro, o seu grupo e os terrenos limpos. Esta aliança é o primeiro ocupante do antepassado (representada pelo chefe da linhagem mahi chamado de Hinnugan, ou chamado no nagô de Balé) bem de sua linha, em que seus descendentes tenham um controle inalienável e imprescritível.

O direito à terra ou a áreas arborizadas pode ser transmitido na tradição do fundador. Eles não podem ser extintos enquanto houverem descendentes que reivindicam o uso, e não podem ser transferidos sem o seu consentimento, de forma permanente, para estrangeiros, ou seja, aos imigrantes. Assim, pela mediação de espíritos ancestrais, o grupo de parentes é que indubitavelmente tem se ligado à terra, de modo que ambas as ligações são complementares e se reforçam mutuamente."


Referências:
Gaston S. Akouehou, «Environnement institutionnel et gestion traditionnelle des espaces forestiers: cas de la région des Monts Kouffé au Centre du Bénin», Les Cahiers d’Outre-Mer, 226-227| Avril-Septembre 2004, [En ligne], mis en ligne le 13 février 2008. URL: http://com.revues.org/index526.html. Consulté le 22 juin 2010.

domingo, 13 de junho de 2010

Agudás.

O texto abaixo é uma reportagem da Revista Veja de 07/07/99 que vale a pena ser relida por ser muito interessante, além de esclarecedora, e que fala sobre os ex-escravos e os negros livres brasileiros que retornaram à África, e dos agudás, seus descendentes, conforme são conhecidos em Lagos e Porto-Novo.

A epopéia do retorno

Romance narra a aventura de escravos
que voltaram à África e enriqueceram
no comércio, na construção
e até no tráfico negreiro

Paulo Moreira Leite


Um romance muito especial retorna às livrarias – A Casa da Água, do diplomata Antonio Olinto. Escrito em 1969, relançado há pouco, o livro mereceu do crítico Wilson Martins a classificação de obra-prima. A Casa da Água é uma obra feliz também por fazer história pela literatura. Apresenta, no reino da ficção, uma epopéia que permanece desconhecida pela maioria dos brasileiros – a aventura dos escravos que deixaram o país para retornar à África, no século passado. No romance, a trama se concentra em três mulheres negras que embarcam num veleiro em Salvador para se estabelecer em Lagos, a então capital da Nigéria. Ali, constituem família, enriquecem, seus descendentes até participam das lutas pela independência. Tudo isso aconteceu na vida real. A diferença é de escala.

No decorrer do século passado, milhares de negros brasileiros atravessaram o Atlântico para residir no Continente Negro. Em Lagos eles formaram um bairro, o Brazilian Quarter. Em Porto Novo, no Benin, instituíram o Carnaval e o costume de comer bacalhau na Semana Santa, além de comemorar a festa do Nosso Senhor do Bonfim. Ainda foram para o Gabão e Gana. Muitos brasileiros enriqueceram a ponto de construir as grandes fortunas de seu tempo. O comerciante Domingos José Martins tornou-se um dos homens mais ricos da Nigéria no século XIX. Vivia em uma casa imensa, com quadros nas paredes, pátio com árvores de laranjeira e sala de visitas com caixas de música, a pré-vitrola da época.

No Togo, que proclamou a independência em 1960, o primeiro presidente da República, Sylvanus Olympio, era descendente em linha direta desses imigrantes. O Benin teve um ministro das Relações Exteriores, chamado Luís Inacio Pinto, que era neto de baianos. Um dos figurões atuais desse país paupérrimo se chama Karim da Silva. Comerciante, Karim é um senhor de bengala e chapeuzinho, que cultiva modos elegantes e automóveis de luxo, com uma frota de Rolls-Royce e Mercedes em sua garagem. Outro nome ilustre vem de uma árvore genealógica fundada por um mulato que se dedicava ao tráfico negreiro, Francisco de Souza, o "Xaxá" (veja quadro).

Uma primeira leva de retornados tomou o rumo da África depois de 1835, quando a Revolta dos Malês, em Salvador, produziu o temor de que no Brasil pudessse ocorrer uma rebelião como a dos negros no Haiti. Setecentos rebeldes foram deportados. Depois, outros negros partiram por conta própria. Nenhum proprietário mandava escravo embora, pois era um investimento caro. Mas o cativo que conseguia a alforria, seja pela compra da liberdade, seja como recompensa após décadas de bons e duros serviços, era pressionado a deixar o país. No mundo do século XIX, em que as idéias racistas ocupavam lugar central na organização das sociedades, nenhum governo considerava conveniente manter os negros dentro de suas fronteiras com o fim do cativeiro. Os Estados Unidos estimularam o retorno dos escravos a um país improvisado, a Libéria. No Brasil de Pedro II foram elaboradas leis que forçavam a saída dos negros. Os cativos podiam juntar dinheiro – mas eram proibidos de comprar bens de raiz, mesmo que fosse uma terra para trabalhar. Todo alforriado era convocado a se registrar na polícia, vivia sob vigilância e era obrigado a pagar um imposto exorbitante, não cobrado dos brancos. Convencido de que o retorno seria uma solução razoável num país que importava imigrantes europeus em grande escala, depois da proclamação da República o governo financiou a volta de milhares de negros.

Boa parte dos retornados não era a ralé da senzala, mas uma espécie de elite negra, que havia aprendido um ofício no Brasil. Artesãos que sabiam ganhar a vida, mesmo se obrigados a entregar seus rendimentos a um senhor. Chegaram à África como os primeiros sapateiros, ourives, mestres-de-obras e carpinteiros. Boas costureiras, as brasileiras levaram a moda européia para o continente. As cozinheiras conquistaram freguesia como banqueteiras. Mas o principal papel que os ex-escravos desempenharam foi no grande comércio. Num artigo dedicado ao assunto, Gilberto Freyre diz que eles foram os pioneiros do capitalismo na África. Sua presença, diz o professor, "marca significativo começo de burguesia capitalista africana em terras até então virgens de burguesismo e de capitalismo indígena".

Uma atividade a que os negros se dedicavam sem dor na consciência era o comércio de escravos, o que não espanta pelos olhares da época e do lugar. Grande mercadoria de exportação africana por três séculos, a captura e revenda de cativos em ações de guerra produziu milionários sem conta, brancos e negros. Na segunda metade do século XIX, quando o tráfico negreiro começou a declinar no comércio internacional, os comerciantes brasileiros mudaram de ramo, mas seguiram enriquecendo, levando produtos brasileiros para lá, trazendo produtos africanos para cá. Volumosa, a compra e venda com o Brasil era menor que a dos ingleses, mas maior que a dos franceses e só um pouco inferior à dos alemães.

De bolso cheio, os antigos escravos investiam até em atividades culturais. Em Lagos formou-se uma companhia teatral chamada Brazilian Dramatic Company. Quando a notícia do 13 de maio de 1888 chegou à África, os brasileiros organizaram festejos que duraram uma semana. Guardou-se uma foto da comissão responsável pelo evento. São elegantes homens de fraque, negro como sua pele. Os brasileiros levavam uma vantagem sobre os nativos. Eram os únicos cidadãos ocidentalizados num continente que começava a ser conquistado por Inglaterra, Bélgica, Alemanha e França. Eles acabaram recrutados, em boa quantidade, para os melhores empregos na administração colonial e para grandes casas comerciais européias. Outra diferença era a religião. Uma parcela dos que retornaram era formada por muçulmanos, mas a maioria chegou convertida ao catolicismo, e isso marcava. A identificação com essa religião era tão grande que, na língua ioruba, um mesmo termo, agudá, serve para designar brasileiro e católico.

Agora que o Brasil é uma lembrança dos avós que já morreram, o sinal permanente da presença brasileira na África se encontra na arquitetura. O sobrado criado pelo colonizador português na América saiu do Brasil e foi de navio para o Continente Negro, onde ficou de pé graças ao talento e à competência de construtores, mestres-de-obras e pedreiros brasileiros. Esses casarões de dois andares, de tijolo e cimento, eram novidade em um lugar onde a maioria das moradias era de barro ou de palha. Foram erguidos em toda parte. A mesma técnica de construção serviu para levantar edifícios públicos, catedrais e mesquitas. Como os brasileiros se tornaram símbolo de gente com dinheiro e prestígio, seus casarões viraram sinal automático de riqueza. Hoje, suas obras alimentam trabalhos acadêmicos. O arquiteto brasileiro Marianno Carneiro da Cunha e sua mulher, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, escreveram Da Senzala ao Sobrado – Arquitetura Brasileira na Nigéria e na República Popular do Benin, obra básica sobre o tema. O italiano Massimo Marafatto também fez um livro, inédito em língua portuguesa, intitulado Casas Nigerianas-Brasileiras.

O primeiro a estudar os afro-brasileiros foi Pierre Verger, antropólogo francês que adotou o Brasil como pátria e o candomblé como religião. Verger entrevistou e fotografou brasileiros na Nigéria, ainda nos anos 40. Diplomata com posto em Lagos, além de escrever A Casa da Água Antonio Olinto produziu uma obra de pesquisa histórica, chamada Brasileiros na África, em que faz um apanhado do assunto. No ano passado, o professor Victor Leonardi e o cineasta Renato Barbieri realizaram o documentário Atlântico Negro na Rota dos Orixás, estabelecendo laços entre imigração e religião. Há trinta anos, o embaixador Alberto Costa e Silva produziu um ensaio sobre o tema, chamado Vícios da África. "Até hoje esse episódio permanece na semiclandestinidade", diz. Acompanhar a trajetória desses brasileiros capazes de dar a volta por cima na mais dolorosa condição humana, que é a escravidão, é partilhar uma surpreendente aventura.


Negreiros ricos e famosos

Xaxá VIII: dinastia de 200 anos

Nenhum traficante de escravos foi tão rico e famoso quanto Francisco Félix de Souza, o primeiro "Xaxá". Mulato, aparecido na África no final do século XVIII, Xaxá fundou uma dinastia familiar riquíssima, que sobrevive há 200 anos. O atual patrimônio da família, um dos maiores do Benin, é administrado pelo empresário Honoré Feliciano de Souza, o Xaxá VIII. Os viajantes do século passado descrevem a casa de Xaxá I com "alguma coisa de palácio oriental" e outro tanto de "palacete de novo-rico", mas contam que ali se usavam roupas importadas da França, se ofereciam charutos de Havana e cachaça do Brasil. Xaxá I viveu cercado de belas mulheres e, em sua morte, recebeu as honrarias de praxe no continente na época: cinco meses de festejos fúnebres, em que foram sacrificados cinco seres humanos – um rapaz, uma moça e três adultos. Seus sucessores deixaram lembranças variadas. Xaxá II assumiu o posto após uma briga de família, mas morreu moço. Xaxá III fez levantar uma casa onde usava cachaça em vez de água na argamassa. Xaxá IV aliou-se a Portugal, que tentou recuperar espaço na África. Já o Xaxá V teve os bens confiscados, mas seu sucessor pegou tudo de volta.



Imagens desta postagem: Revista Veja de 07/07/99.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Pai Dancy Entrevistado no Jornal Hwendo.



Fotografado na capa do Hwendo de Junho de 2010, que faz dois anos nas bancas de jornal desde sua primeira edição, Pai Dancy (Estado de São Paulo), um grande lutador contra a intolerância religiosa, é o primeiro sacerdote brasileiro do Jeje a dar uma entrevista a um jornal exclusivamente dirigido ao público seguidor do culto vodún tradicional no Benin.
Parabéns guerreiro do axé Pai Dancy! Parabéns Hwendo!

terça-feira, 8 de junho de 2010

Em Mahi Tudo Passa Pela Água.

Lago Azili

No culto de Mami Wata do Togo, o vodum Ayizan é considerado uma Mami Wata em terra firme, e a faz fecunda para o plantio, tal consideração é observada também no Haiti.
Como um das etapa da Festa do Vodum no Benim a cerimônia do Gozin de Dangbé e Agbé em Ouidah, consiste em buscar água em jarras (gozin) de um riacho por 41 meninas virgens para ser consagrada aos rituais de purificação. No riacho. Também é conduzida a hunsó em procissão para o Ritual do Tó (Tò Yiyi) símbolo de sua purificação renascendo para uma vida de iniciado no vodum, ritual também observado no Brasil.
A água está sempre presente nos ritos e onde não a vemos à atinsá (aos pés do atin – árvore sagrada de um vodum, a palavra atin também significa “pó”, por isso é comum se ouvir atinsá no candomblé para diferenciar) ou de seu fetiche ou altar, comumente uma prática nagô, a vemos servida molhando-se a terra por 3 vezes defronte a estes símbolos sagrados como na maioria dos cultos vodum, uma das razões pela qual os interiores dos kpejis (recinto interno de fetiches vodum) são de chão de barro batido.
Em candomblé Jeje Mahi é costume geral passar tudo que é oferecido e consagrado ao vodum pela água, além dos ritos de iniciação. A água fonte e manutenção da vida se faz presente até na morte inclusive no tambor d'água o sinhun. Rumo a origem das água do Rio Mono e depois seus afluentes, os adjas foram se estabelecendo ribeirinhos e adentrando o Benin por séculos no passado dando origem a muitos clãs de hoje em dia.
Quando o Rei Agadja perseguiu nagôs e os mahis, que foram se formando como refugiados de guerras, para vender como escravos ou mesmo como cobrança de impostos em algumas localidades, além das colinas, e ilhas, a própria água também servia de refúgio e bastava mergulhar, assim surge o método da Pesca de Agadja utilizado pelos Tofin na pesca do peixe no Lago Nekoué, que nada mais é que a interpretação de uma forma de reter indivíduos que se mantinham submersos por um longo tempo e obviamente teriam que emergir, quando da investida das tropas do rei na captura de pessoas para serem enviadas como escravos ao Novo Mundo. Tal procedimento era muito comum também em Zagnanado na vila de Agonvè-Azilidji ilha no Lago Azili que surgiu como proteção às investidas, assim como em outras localidades onde a investida se fazia próximo a um recurso adequado para a fuga, principalmente de jovens estruturados fisicamente para o trabalho braçal, o alvo principal. Nesta época e posteriormente em outras semelhantes, a água tornou-se “garantia de liberdade” para muitas pessoas, além de fonte e manutenção de vida.
O lago Azili, conforme uma lenda, foi um presente do vodum Sakpatá agradecido ao Rei Agbannon para que não faltasse água e peixe a seu povo, quando por ele fora acolhido na forma de um faminto e sedento leproso. Desde então o lago tornou-se sagrado e suas águas importantes dentro do culto vodum e tudo que se oferece e consagra aos voduns da localidade passam por suas águas. Os voduns Hlàn e Azili asseguram a preservação do lago, dividindo a importância local com o mais antigo, o vodum Agonvè (do Coqueiro Vermelho), que garante a frutificação do dendezeiro para principalmente a extração do azeite-de-dendê.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

O Vodum Ogu.

Um fetiche Ogun (da porta) em Porto Novo (foto em http://ikoyi-adjache-ile.com/index.html)

Ogu (Ogu dentre os hula; Gŭ entre os fons; Ogun entre os nagôs; Ogum no Brasil) é a divindade associada ao ferro, com o qual são confeccionados seus símbolos e seu sabre, o gubasá (gubassá); aos que trabalham a metalurgia; divindade dos guerreiros e expedicionários; da cirurgia e da tecnologia. É a primeira divindade reverenciada antes de qualquer cerimônia para se garantir o bom êxito das mesmas. Recebe suas oferendas e libações no fogo, na terra, no ar ou na água, conforme a determinação do Fá (Ifá) ou do vodum. Doenças de pele que trazem a sensação de estar queimando, urticárias, e outras, estão relacionadas com este vodum quando associado ao fogo.
Seus filhos em geral denominados oguvi tem o arquétipo de pessoas destemidas, batalhadoras e generosas, e quase sempre passam pela mesa de cirurgia. Seus iniciados são os ogusi (ogunssi), e ogusivi para o iniciado mais jovem, já os filhos dentro do culto em outros cargos são denominados de ogujo (ogundjô em português), o mais velho ogujogan, e o mais novo ogujovi. Os ogusi respeitam o vodún sù (a proibição do vodum) de comer carne de animais abatidos por acidentes, carne seca ou salgada, bacalhau seco, peixes e crustáceos secos ou salgados, que Ogu não aprecia, e os hulas guardam as sextas-feiras para cuidar de seu fetiche que fica sempre depositado à entrada de uma cidade, casa ou templo, em um huntigomε (huntigomé é uma árvore que lhe pertença, como é o hunmatin, Ahoho ou Akoko) e atin sá (aos pés desta árvore em templos, ou em entradas de vilas e cidades como tovodun, o Togu), ou em seu gubaji (gunbadji) ou oguxɔ (oguho, seu quarto sagrado).
Os fons lhe dedicam a terça-feira (gùzangbè) e o domingo para todos os voduns, e principalmente sendo um alintin (coincidir com um dia sagrado).
Das doze divindades populares do culto yεhoué dos hulas, Ogu e Ahwanba (que se tornou Dangbé em Ouidah porquê veio dos adangbe) são as que mais se destacam nas cerimônias e festas, Ogu recebe sua reverência sempre no início das mesmas.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

O Hùngbè.

As línguas dos candomblés de jeje:

Não muito diferente do que é existente dentros dos cultos tradiconais de vodún africano (Hwendo)
a ramificação é identificada pelo uso da língua. Os cultos de vodún em si reúnem vários idiomas distintos, segundo origens étnicas de cultos, porém, identifica-se a ramificação pela maioria de termos utilizados no dia-à-dia e não somente nos cânticos festivos.
A maioria de termos define o Jeje. Assim temos:

Jeje Mahi- Maioria de palavras em língua mahi;

Jeje Mina- Maioria de palavras em língua mina;

Jeje Dahomé- Maioria de palavras em ewe-adja;

Jeje Savalu- Maioria de palavras oriundas do nagô de Savalu,

Jeje Mina Popo- Maioria de palavras em Mina;

Jeje Modubi- Maioria de palavras ewe-adja e com forte influência nagô.


A coletividade e a individualidade do hùngbè:

À toda linguagem falada dentro de um culto de voduns denominamos hùngbè (rumbê). O hùngbè nada mais é do que esta linguagem como um todo e também em particular. Pois cada vodún possui seu próprio hùngbè de acordo com o local de origem de seu culto., assim sendo o hùngbè de Sakpatá é ayonù (nagô), o de Agbé é mina, o de Odé (considerado um vodún nagô em jeje mahi) é nagô, e assim sucessivamente.
Os mahis utilizam o mahigbè (mahi) que é uma linguagem muito semelhante ao fongbè, aliás as línguas gbè são aparentadas, e por isso existem muitas semelhanças de palavras entre grupos.


Filiação lingüística.

(In: http://www.everyculture.com/Africa-Middle-East/Ewe-and-Fon-Orientation.html)
O dicionário Pazzi (1976) comparativo dos Ewe, Adja, Guin e línguas Fon demonstra que elas estão intimamente relacionadas, tendo todas se originado séculos atrás com as pessoas da cidade real do Tado. Elas pertencem à linguagem do grupo Kwa.
Existem numerosos dialetos dentro da família do Ewe, como Anlo, Kpelle, Danyi, e Be. Os dialetos Adja incluem Tado, Hweno e Dogbo. 
Fon, a linguagem do Reino de Daomé, inclui Abomey, Xweda e dialetos Wemenu, bem como muitos outros. Kossi (1990, 5, 6) afirma que o nome geral para esta grande família das línguas e dos povos deve ser Adja ao invés de Ewe / Fon, dada a sua origem comum em Tado, onde a língua Adja mãe das outras línguas, ainda é falada.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Bembé do Mercado 2010.



BEMBÉ DO MERCADO 2010.

Data: de 12 a 16 de Maio de 2010 Hora: de 13 a 15 as 21:00 hs e dia 16 as 08:00 hs, para a entrega do presente na praia de Itapema.
Local: Largo do mercado Cidade: Santo Amaro, Bahia.
Detalhes: O grande manifesto de resistencia da Cultura e religiosidade Negra do País! Batidas de Candomblé, manifestações de Maculêlê, Capoeria, samba de roda.
A festa oferece comidas típicas do recôncavo com maniçoba, feijoada, sarapatel e maturi.
Para compor as mesas redondas, este ano o Bembé conta com o apoio institucional da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB, além do CEAO - Centro de Estudos Afro Orientais (UFBA), Instituto Steve Biko e CEN - Coletivo de Entidades Negras.

CELEBRAÇÕES DA LIBERDADE:
• 1ª Mesa: Joaquim Nabuco e os Abolicionistas Naiano (sexta-feira)
• 2ª Mesa: João de Obá e outras celebrações do 13 de maio (sábado / manhã) 
• 3ª Mesa: 13 de maio, Quilombo dos Palmares e outros sonhos de liberdade (sábado / tarde) Teatro Dona Canô.

A Equipe do PAPOINFORMAL estará representada no evento. Não perca!

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Principais Cargos dos Candomblés de Jeje.

Agbajigăn (Agbadjigã)- Literalmente: O chefe da praça, agbají, local em frente ao convento onde ficam os tambores e as pessoas se reúnem para assistirem as saídas do vodún. Amawáfá (Aman-Uafá)- Literalmente: A folha que vem fresca; entendido pelos nagôs como onan ofà (onã ofá). Função do catador de folhas num zogbé ou zùngbó. Derε (Deré)- Primeira auxiliar do sacerdote. Donε (Doné)- Sacerdotiza do culto de Heviosso; título muitas vezes extensivo aos sacerdotes de jívòdún. Dotε (Doté)- Sacerdote do culto de Heviosso; título muitas vezes extensivo aos sacerdotes de jívòdún. Gayaku (Gaiacú)- Sacerdotisa do rito Nagô Vodum do candomblé. Găn n'kpè (Gaimpê)- Auxiliar do KPèjígăn; é aquele que sacrifica somente aves no altar. De Găn yĭ kpè, literalmente: O chefe que recebe a pedra (de seu predecessor o KPèjígăn ). Hŭn tɔ́ (Runtó) - o pai (tɔ́) do tambor (hŭn). Aquele que toca atabaques (Alagbe em Jeje Mahi e no rito Nagô Vodum). Hŭn tɔ́găn (Runtó Gã) – O chefe dos tocadores de atabaques. Ele dá o ritmo com o gàn (instrumento de ferro) aos tocadores. Função feminina em Mina Jeje e no Tambor de Mina (Hùn nɔ́găn). Hŭnsὲngăn (Russengã,Ruzengã ou Rozengã)- Auxiliar imediata do vodum. O mesmo que ekεji (ekédji) do yorùbá ekeji (segunda). A palavra ekεji é mais usual em candomblé Jeje Mahi e no rito Nagô vodum. KPèjígăn (Pejigã)- Literalmente: O chefe do kpèjí, altar, é aquele que sacrifica o bicho de 4 patas. Mεjitɔ́ (Mé-djitó, mejitó)- Literalmente pai ou mãe, no seio familiar; é o sacerdote do culto de Dàn. Nágbó (Nangbô)- Literalmente: A grande mãe. Mulher mais velha que instrui a hunsɔ́ e o hùndevá, que são iniciantes (vodunsi) em processo de recolhimento. Ogan Kútɔ́ (Ogã cutó) ou Kútɔ́găn- Aquele que é responsável pelos rituais pós morte (kú) e pelo sìnhún (tambor d'água). Yátemi- Título de uma sacerdotisa de qualquer divindade no nagô. Vem do yorùbá arcaico “iyà ti ëmi” (mãe de eu). Literalmente “minha mãe”, para não se pronunciar “Yá mi” que é o nome da coletividade de mães ancestrais, quando se pronuncia este nome ancestral tem que se estar de pé e em seguida saudá-las, sendo sem querer, bate-se na própria boca e pede-se perdão, pois o fez em vão. Esta é uma visão dos cargos mais importantes nos candomblés Jeje de uma forma geral, não nos esquecendo que os títulos variam muito, os dispostos aqui são mais voltados para os segmentos de Jeje Mahi, Daomé, Savalu e Modubi, com ligeiras modificações de um segmento para o outro.

 


 

Complemente com esta leitura: O BARCO DE VODUNSIS

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Dangbé, Origem Adangbe.



Ga-Adangbe

O Idioma:
Os nomes alternativos são: DANGBE, ADANTONWI, AGOTIME, ADAN

Região:
Área de fronteira com o Togo diretamente a leste de Ho. Os Agotime estão principalmente em Gana, na região Volta, nas cidades de Gana estão em Kpoeta Apegame, entre outras. O idioma é falado também no Togo.
O Adan e o Agotime são grupos étnicos distintos que falam o Adangbe.

O povo Ga-Adangbe habita as planícies de Accra. O Adangbe é encontrado a leste, e os grupos Ga, a oeste do litoral de Accra. Embora ambas as línguas sejam derivadas de uma língua proto-Ga-Adangbe, ancestral comum, o Ga moderno e o Adangbe são mutuamente ininteligíveis. O Adangbe moderno inclui o povo de Shai, La, Ningo, Kpone, Osudoku, Krobo, Gbugble e Ada, que falam dialetos diferentes. O Ga inclui também os grupos de Ga-Mashie que ocupam bairros na região central de Accra em Gana e outros outros falantes Ga que migraram de Acuamu, Aneho (Pequeno Popo) no Togo, Akwapim, e áreas adjacentes. Os Adangbe no Togo foram um dos pré-ajá.

Debates persistem sobre as origens do povo Ga-Adangbe. Uma escola de pensamento sugere que o povo proto-Ga-Adangbe veio de algum lugar a leste de Accra na planície (o povo Adangbe também esteve estabelecido, durante um período, no norte da Nigéria), enquanto a outra sugere uma localidade distante, bem além da costa do Oeste Africano, seriam originariamente núbios.

“A Núbia é a região situada no vale do rio Nilo que atualmente é partilhada pelo Egito e pelo Sudão mas onde, na antiguidade se desenvolveu o que se pensa ser a mais antiga civilização negra da África (baseada na civilização anterior do Baixo Egito, que deu origem ao reino de Kush, que existiu entre o 3º milénio antes de Cristo e o século IV da nossa era). Este reino foi então dominado pelo reino de Axum e aparentemente, os núbios formaram novos pequenos estados fora da região ocupada. Um deles, Makuria tornou-se preponderante na região, assinando um pacto com o Egito islâmico para conservar a sua religião cristã (copta), que conservou até o século XIV, quando foi finalmente submetida aos árabes dominantes, mais precisamente dominada pelos Turcos Mamelucos por volta de 1315. Eles impuseram sua religião muçulmana e colocaram no poder um príncipe Núbio convertido ao Islã.
No entanto, a parte sul conservou-se independente, como o reino de Sennar, até o século XIX, quando o Reino Unido ocupou a região. Com a independência dos atuais estados africanos, os núbios ficaram divididos entre o Egito e o Sudão.
Nesta região, na grande curva do Nilo, na parte sudanesa, encontram-se as ruínas das cidades de Napata, perto do monte Gebel Barkal, e Meroe que foram inscritos pela UNESCO, em 2003, na lista do Patrimônio Mundial.
Apesar de essas teorias históricas e linguísticas, fica acordado que as pessoas que foram assentadas nas planícies por volta do século XIII, tanto o Ga e o Adangbe foram influenciados por seus vizinhos. Por exemplo, ambos emprestaram algo de seu vocabulário, especialmente palavras relativas às actividades econômicas e políticas, a partir do Guan. Acredita-se também que o Éwé influenciou o Adangbe. (Fonte: Wikipédia).”

Dangbé:
A serpente sagrada Dangbé, principalmente cultuada em Ouidah, Benin, tem sua origem de culto nos Adangbé, e tal culto foi muito difundido no passado.
Os Ga-Adangbe cultuam suas divindades sobre o “otutu” (*), uma espécie de cone sobre qual é depositado o fetiche Dangbé. A escola de pensamento que sugere a origem Núbia assimila o cone-altar como tendo origem nas conhecidas Pirâmides.
Dangbé (com som de “E” fechado) é uma palavra de origem Gá-Adangbe e não deve ser traduzida como se fosse uma palavra Fon. Adan refere-se ao povo e ao idioma, e Gbe ao idioma dos Adan. Traduções de Dangbé como serpente da vida são errôneas, visto que em Fon a palavra gbè é idioma, e vida em fon é Gbὲ, com som de “E” aberto.

(*)- Otutu: Altar em Ga-Adangbe, já em fongbè otutu é oferenda e nome do pássaro de Legba, do iorubá etutu.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Hùnxwedoxo e Asihuhu, Morte e Ressureição da Hunsó.



"Ressuscitação de Moça Morta Há Sete Dias."

Texto e fotos de Robert Grainville
O jornalista francês Robert Grainville
participou no Daomé (África)
de um dos mais impressionantes rituais
de iniciação da África Negra.

Ante seus olhos,
uma moça que estava clinicamente morta
há sete dias foi ressuscitada
pelos sacerdotes do orixá Sapata,
o deus da terra e da varíola.


Um grito de dor, após o ritual em homenagem ao orixá Sapata.
A moça, que estava clinicamente morta, volta à vida.
Marcando o ponto culminante da festa da ressurreição, uma das cerimônias mais importantes entre os f fons do Daomé.

Um povoado africano, em meio à densa floresta tropical do Daomé. As casas circundam um espaço vazio, espécie de praça central. Tudo é ainda silêncio, e ninguém permanece na praça. Mas o dia de hoje não é como os outros.

De repente, do interior de uma das casas maiores, uma espécie de convento, ouvem se gritos lancinantes de mulheres. Como que despertados por esses gritos, os atabaques começam a tocar.
É preciso esperar. Eu, europeu, e os demais habitantes não iniciados temos que aguardar o término da cerimônia de adoração do orixá, feita no interior do convento, e assistida apenas pelos sacerdotes e sacerdotisas. Logo após, no meio da praça, todos assistiremos à demonstração do poder de Sapata (deus da terra e da varíola, correspondente a Omulu e Abaluaé nos cultos afrobrasileiros).



Sapata vai ressuscitar uma jovem, clinicamente morta há sete dias.
Chegar até este povoado, e conseguir autorização para presenciar e fotografar a cerimônia, custou me meses de trabalho e dedicação. Estou aqui graças à bondade do chefe do povoado de Aliada, que é também o líder de todos os rituais religiosos dos fons (a principal etnia do Daomé, que vive ao sul do país). Consegui convencer esse chefe do meu interesse a tudo que concerne ao vodum, a religião dos fons, e ele me convidou a assistir à festa da ressurreição. Entregou me aos cuidados de um de seus filhos, que me explicou cada fase do complexo ritual.

Num instante, os atabaques param de tocar. Cadeiras e bancos são trazidos para a praça central, e os habitantes reúnem se em círculos. Entre eles encontram se os familiares da jovem morta, que trouxeram oferendas a Sapata, a fim de que este traga sua filha de volta de seu reino.



O lento despertar do reino da morte
Os músicos dos atabaques já saíram do convento, e tomaram lugar entre as cadeiras, com seus instrumentos seguros entre as pernas. Recomeçaram a tocar, mantendo o mesmo ritmo, constituindo um estranho e estimulante fundo musical.

Agora são as sacerdotisas que chegam, facilmente reconhecidas pelas inúmeras cicatrizes que ornam sua pele. Com a cabeça raspada, elas se enfeitam com braceletes e colares feitos principalmente de cauris (pequenas conchas, conhecidas no Brasil como búzios e que serviam antigamente de moeda). Além de enfeites, esses objetos têm um importante significado ritualistico. Todas trazem na fronte uma fita ornada com plumas de papagaio: sinal que distingue as sacerdotisas de Sapata. Depois, são os vodum non, feiticeiros, que entram na praça. Em seguida, chega o corpo da jovem morta enrolado num lençol imaculado, carregado por quatro homens. No centro da massa humana reunida, foi deixado um espaço livre sobre o qual ninguém pisa. Nesse espaço o corpo é depositado, e desnudado. A jovem não apresenta nenhuma manifestação de vida. Não respira, não se move. A pele adquiriu uma tonalidade cinza, e apresenta diversas feridas purulentas. Os sacerdotes trazem uma grande cabaça cheia de água, na qual foram mergulhadas diversas plantas.

O canto das mulheres recomeça, monocórdico. Lava se o corpo da jovem com a água da cabaça. Ao mesmo tempo, as sacerdotisas libertam se de seus atributos, e começam a massagear o corpo. O lençol é umedecido, e usado por momentos como sudário.

O trabalho de massagem dura cerca de duas horas, onde se repetem os mesmos gestos e cantos. Algumas pessoas jogam moedas sobre o lençol. Ninguém fala. Pouco a pouco o corpo retoma sua cor normal, negra, mas permanece sempre inerte.

A certo ponto, o silêncio se faz mais profundo. As sacerdotisas se afastam. Chega o lider dos feiticeiros, que se ajoelha ao lado da jovem, inclina se sobre seu ouvido, e grita seu nome com todas as forças. “Ele deve chamá la sete vezes", diz meu guia e companheiro. E, fora esse grito que se repete, nenhum outro ruído afasta o pesado silêncio. Sete vezes, e nada acontece! Um sobressalto percorre a multidão.

Um oitava vez o nome da jovem é gritado pelo feiticeiro. E, então, ela gemeu! Todos nós somos testemunhas: ela gemeu.

O atabaques e os cantos se desencadeiam: Sapata aceitou que a jovem se torne mais uma de suas sacerdotisas. Imediatamente, a rapariga tem sua cabeça coberta, e é retirada para o interior do convento. Sua iniciação começou, e ela não deverá ver o mundo exterior.

No povoado a festa vai continuar durante todo o dia e toda a noite. Todos vão comer, beber, dançar e rir muito, contagiados pela típica alegria africana, um estado de espírito que tudo arrasta à sua passagem.
O ritual para ressuscitar é apenas uma parte ínfima dos complexos processos de iniciação ao culto de Sapata, que dura pelo menos três anos. Período durante o qual os jovens discípulos são completamente isolados do mundo exterior.

A cerimônia da ressurreição é, de fato, primordial. O chamado ao novo "filho" do orixá é feito pela própria entidade (que se apodera de seu corpo provocando profundos transes mediúnicos), ou decidido pelos familiares ou pelos outros sacerdotes. A idade média de iniciação, tanto para moças como para rapazes, varia de oito a dezesseis anos. Os dois sexos, se bem que em habitações diferentes, seguem mais ou menos os mesmos ritos e etapas iniciáticas.

Desde sua entrada, o jovem discipulo entra num estado de morte aparente, onde cessam todas as suas funções vitais. Durante sete dias, ele vai permanecer no local sem receber nenhuma alimentação, bebida, ou cuidado. Já nesta primeira etapa, ocorre uma seleção natural: alguns, após sete dias, despertam, e outros, não. Estes últimos Sapata não os quer para servi lo neste mundo, e por isso os guarda junto de si.



Três anos, e Sapata tem mais um sacerdote
Após serem cuidados, e postos em boas condições físicas, os jovens escolhidos irão aprender a linguagem secreta dos iniciados, os cantos, danças, as diversas operações mágicas. Serão feitas cicatrizes em seu corpo, principalmente na fronte, costas, ventre e braços. A cada corte que produzirá uma cicatriz, será proferida uma prece, e um pouco de pó à base de plantas carbonizadas será depositado no interior da carne.

Cada uma delas destina se a proteger o iniciado contra a feitiçaria, os inimigos, e também a lhes dar poder e direta ligação com o grande orixá.

Os discípulos deverão também aprender as propriedades de cada planta mágica ou medicinal, propriedades que tanto podem ser boas como maléficas. Os remédios, as poções, amuletos, não mais terão segredos para eles. Entre essas operações, uma das mais respeitadas e temidas é a cultura do vírus da varíola.

Eles conhecerão cada deus animista, cada ser da natureza, e as cerimônias a eles relacionadas. Mais tarde, para os rapazes, após passarem outras temporadas em reclusão, será permitido servir também a outros desses deuses.

Ao término da iniciação, rapazes e moças retomarão sua vida normal, mas estarão sempre à disposição do grande feiticeiro para os rituais. Periodicamente, retornarão aos conventos durante algumas semanas.

Existem muitas coisas para se descobrir nos meios vodum do Daomé. Os fons constituem uma das últimas etnias que conservam de forma cuidadosa e ciumenta suas tradições religiosas. Foram eles, junto a outras raças africanas, que introduziram o culto dos orixás no Brasil e no Haiti, por intermédio da escravidão. Se bem que possa haver charlatanismo em algumas dessas festas, a sinceridade e autenticidade dessas crenças, o perfeito conhecimento das propriedades das plantas, a força mística dos chefes de culto são elementos dignos de serem aprofundados.



Revista Planeta
Número 66 - Março de 1978

Fontes:
http://www.imagick.org.br/zbolemail/Bol06x12/BE12x11.html
http://www.sitedecuriosidades.com/impressao.php?id=ressuscitacao_de_moca_morta_ha_sete_dias.html

O Sincretismo do Ritual da Cura no Candomblé.

Cruzeiro (Cruz). Foto Wikipédia.

O Ritual da Cura ou Fechamento de Corpo praticado em muitos candomblés na Sexta Feira da Paixão, que é uma data que os católicos dedicam à memória da crucificação de Jesus Cristo, tem origem nas mais antigas práticas bantos de calundus (formações religiosas anteriores à formação do candomblé modelado pelo Ketu na Bahia).
Algumas tradições Jeje Mahi, formações de candomblés Nagô Vodum, e Jeje Nagô principalmente, absorveram, em sua formação, do elemento banto presente no Recôncavo Baiano, tal tradição, umas casas como as de Candomblé de Angola realizam na Sexta Feira da Paixão e outras tradições segmentadas e formações não propriamente no dia santificado dos católicos, mas em etapa anterior ao sacrifício do bicho de 4 patas do rito de iniciação.

A “cura” é uma denominação para a “cruza ou cruz”, sinal recebido dos mercadores e traficantes de escravos para marcá-lo e distinguí-lo dentro de um grande número de indivíduos, principalmente assim agiam os mercadores e traficantes espanhóis, portugueses e brasileiros (muitos referidos ao longo da História como sendo portugueses). Tal símbolo era marcado nos braços, peito, costas dos escravos de forma a marcá-lo com sendo já batizados e portanto que já haviam recebido o nome pelo qual deviam ser conhecidos doravante, só então depois eram conduzidos ao Brasil em navios negreiros. Tal flagelo atendia a grandes encomendas de escravos principalmente para o árduo trabalho da lavoura no Ciclo da Cana de Açúcar.

Em fongbè (Língua Fon) a cruz é denominada kluzú (pronunciando-se curuzú, que dá nome a uma localidade em Salvador, Bahia). Para o indivíduo banto de forma geral e principalmente no Brasil ficou entendida como “cura”. Também no Brasil muitos índios entenderam o símbolo da cruz como curuçá ou cruçá a partir dos Jesuítas, passando assim a denominá-la.

O segredo do Fechamento de Corpo no Ritual da Cura está no que lhe é passado depois da marcação do sinal e o que é rezado naquele momento, diferindo os ingredientes passados e ingeridos e as rezas de acordo com o candomblé.

sexta-feira, 26 de março de 2010

A Inquisição no Brasil e os Escravos Africanos.

Cicatrizes de açoites em um escravo. Foto Wikipédia.

Os textos que vão abaixo são da autoria de Luiz Mott, estes textos ilustram bem um passado em que a Inquisição dominava -também- no Brasil. São textos dos arquivos do antigo Geocities, verdadeiras pérolas da pesquisa afro-brasileira. O primeiro trata da atuação da Inquisição no Estado de São Paulo, e o segundo trata de um relatório de denúncias no Estado da Bahia ao Santo Ofício.


"Paulistas e Colonos de São Paulo nas Garras da Inquisição"

Autor: Luiz Mott.

Muito pouco se escreveu até hoje sobre a Inquisição em São Paulo. Tema apaixonante mas pouco pesquisado, malgrado a existência de documentação substantiva que permite-nos afirmar que este Monstrum Horribilem, o famigerado Tribunal do Santo Ofício da Inquisição teve atuação muito mais freqüente e repetida na Capitania de São Paulo, do que até agora os historiadores revelaram.
Quando se fala da presença do Santo Ofício da Inquisição no Brasil, imediatamente se pensa no Nordeste, posto ter sido a Bahia e Pernambuco as Capitanias mais atingidas pela famigeradas Visita-ções de 1591 e 1618 (1). Embora bem menos devassadas, também as Capitanias do Sul, inclusive São Paulo, padeceram terríveis cons-trangimentos e perseguições por parte do incendiário Monstro Sa-grado, tanto que dos 20 morado-res do Brasil a ser queimados nos Autos de Fé de Lisboa, quando menos dois eram residentes nos planaltos de Piratininga: Teotônio da Costa (1686) e Miguel de Men-donça Valhadolid (1731) ambos in-culpados por praticar a Lei de Moi-sés. (2)
Após prolongadas pesquisas na Torre do Tombo, de Lisboa, on-de estão arquivados mais de 40 mil processos inquisitoriais e outro tanto de denúncias e confissões pertencentes à alçada do Santo Ofício, localizamos pessoalmente, até agora, 47 episódios envolven-do moradores da Capitania de São Paulo - material em sua maior parte inédito e que aguarda que al-gum pesquisador da terra lhe dê tratamento mais acurado e a divul-gação que está por merecer.
Praticamente todos os crimes perseguidos pela Inquisição foram praticados e denunciados em São Paulo, destacando-se 16 padres so-licitantes, oito sodomitas, sete bígamos, sete feiticeiros, três auto-res de proposições heréticas, dois cristãos-novos e ainda dois episó-dios envolvendo irregularidades no exercício do cargo de Familiar do Santo Oficio. Tais números certa-mente estão sujeitos a acréscimos - sobretudo quanto à presença dos criptojudeus, a minoria religio-sa mais perseguida pela sanha in-quisitorial - sobre os quais o lei-tor interessado encontrará maiores informações notadamente nas obras de José Gonçalves Salvador, Arnold Wiznitzer e Anita Novinsky.(3)
Dos residentes na Capitania de São Paulo cujos nomes e des-vios chegaram ao Tribunal do San-to Ofício, nos concentraremos inicialmente nos inculpados em crimes da fé: sete acusações de feitiçaria, três denúncias de pro-posições heréticas e dois casos de livres-pensadores. Numa segunda parte deste ensaio analisaremos as histórias de vida de 16 padres residentes na Capitania de S.Paulo envolvidos com melindroso pecado: a solicitação no confessionário de suas penitentes para atos torpes, na época chamada de "solicitatio ad turpia".
Deixaremos para outra ocasião o estudo dos demais desviantes se-xuais: os oito sodomitas (homos-sexuais masculinos) e os sete bíga-mos.
Os doze epi-sódios atinentes aos chamados "crimes contra a fé" ocorreram entre os anos de 1741 é 1781, portanto no período que inclui a restauração da Capi-tania (1765) e a chegada de seu pri-meiro Bispo (1764), época em que essa região, até então muito mar-cada pelo apresamento e tráfico de índios, amplia sua base econômi-ca, passando a incrementar, além da policultura de subsistência, a florescente agroindústria açucarei-ra e a manufatura têxtil, as famo-sas redes paulistas tão disputadas pelos viajantes coloniais. E nessa segunda metade do século XVIII que tem lugar a maior ocupação das regiões de Atibaia, Sorocaba e Itu - exatamente as áreas mais citadas nos medonhos Cadernos do Promotor da Inquisição de Lisboa.
Hereges e libertinos
Desses doze episódios des-viantes em questão de Fé ocorri-dos em São Paulo, comecemos pe-lo mais recuado cronologicamente - 1741 - quando um cidadão re-sidente na vila de Araritaguaba (hoje Porto Feliz) é denunciado ao Santo Oficio como libertino. Eis como o dicionarista Antônio de Moraes e Silva, ele próprio denun-ciado à Inquisição de Coimbra por esse mesmo crime, definia o que era um libertino: "Indivíduo que é incrédulo na religião e ofende as suas práticas; pessoa que sacudiu o jugo da revelação, entendendo que a razão por si só pode guiar com certeza no que respeita a Deus, à vida futura etc., e por isso não segue os preceitos da religião, antes, pratica atos contrários aos seus princípios".(4)
Essa denúncia ocorreu entre os dias 20-25 de setembro de 1741, inculpando Lucas da Costa Perei-ra, natural do Funchal, então mo-rador na Freguesia de Nossa Se-nhora da Penha de Araritaguaba, sita na margem esquerda do rio Tietê, a cinco léguas de Itu, céle-bre porto de onde partiam as mo-ções rumo à hinterlândia (5).O acusado era "cirurgião aprovado" e constava ter percorrido "toda a América Meridional, assistindo em muitas terras, aldeias e arraiais da Bahia, Rio de Janeiro e São Pau-lo, entre elas Pindamonhangaba e Taubaté". Devia beirar os 50 anos quando chegou à Inquisição de Lisboa a denúncia de que esse ci-rurgião madeirense "come carne nos dias proibidos, não ouve mis-sa e é acostumado a ter atos so-domíticos, sendo agente, com vários negros boçais para cujo fim os sustenta com largueza"(6). Um de seus denunciantes ostentava nome pomposo: Capitão Salvador Mar-tins Bonilha, morador na mesma freguesia, que interpretou as prá-ticas libertinas do cirurgião andarilho como "crime de judaísmo", acrescentando ao rol de suas culpa-s um hediondo sacrilégio muitas -vezes atribuído aos criptojude-us: "teria metido no fogo uma imagem do Menino Jesus!" . Zeloso, o Comissário do Santo Ofício local acondicionou num tufo de algodão a referida imagem carbonizada e a despachou além-mar para que os próprios delegados inquisitoriais avaliassem o sacrilégio. Solícitos em cortar o mal pela raiz, ordenam os Inquisidores a abertura de um Sumário - ordem que leva seis meses de viagem para chegar do Reino às margens do Tietê. Aos 20 de agosto de 1743 tem início o inquérito secreto "em um corredor do Convento do Carmo da Vila de Itu", desempenhando o cargo de Comissário do Santo Ofício o Padre Miguel Dias Ferreira e como escri-vão o carmelitano Frei Diogo Antunes. Uma dezena de testemunh-as confirma as acusações, insistindo, contudo, insistem mais no crime sodomia do que no de "liberti-no" ratificando a preferência do réu por negros boçais, incluindo entre seus cúmplices alguns nativos de Angola, Congo, Benguela, além de crioulos, aos quais "regalava-os com comida e aguardente, brindando-os ele primeiro..." Um sodomita reinol praticante da democracia racial em pleno período escravsita... Entre seus desvios religiosos, além dos já citados, constava "só querer comer touci-nho com couves às sextas-feiras". Sacrilégio cabeludo para aquela época em que qualquer pecadilho levava os católicos a uma eternidade de dias nas chamas do purgatório.
Quando do início desse Sumá-rio, o cirurgião Lucas já tinha se retirado de São Paulo, com destin-o às Minas de Goiás, tanto que somente por volta de 1747 é que a Inquisi-ção conseguirá finalmente agar-rar o sodomita libertino de Arari-guataba, sendo condenado primeiro à pena dos açoites, em segui-da a dez anos de degredo nas galés del-Rei.
Por conta das Visitas Pastorais realizadas no Bispado de São Paulo -pelo Padre Policarpo de Abreu Nogueira, entre 1765-1771, diversos são os desviantes a ter seus nomes enviados ao Tribunal da Fé de Lisboa. Entre eles, o tropeiro Luiz Carvalho Souto, também morador na freguesia de Nossa Senhora Mãe dos Homens de Araritaguaba, que como o cirurgião do Funchal, mantinha acesa nessa vila a chama iluminista da "seita dos libe-rtinos'; sendo acusado de comer carne nos dias proibidos, não se confessar conforme ordenam os mandamentos da Santa Madre Igreja, defendendo ainda a heréti-ca proposição de que "o sexto mandamento (não pecar contra a castidade) não era pecado e nem levava ninguém ao inferno"(7). Centenas de colonos e moradores não só do Reino de Portugal mas também da Espanha foram igualmente denunciados ao Santo Ofício por defender publicamente a mesma convicção: que a "fornicação simples", como os teólogos chamavam às práticas sexuais de gente desimpedida fora do casamento, não eram moralmente condenáveis.
Além destes dois libertinos das margens do Tietê. mais quatro moradores da Capitania de São à Paulo são denunciados por emitirem opiniões contrárias à ortodoxia católica. Em 1762, na vila de Taubaté, Pascoal Pereira, solteiro, defendia que "as almas condenadas haviam de ser remidas, e sua condenação não seria eterna"(8), opinião muitas vezes ressuscitada ao longo dos dois milênios da his-tória cristã, e que teve em Giovan-ni Papini (1881-1956) seu mais re-cente defensor. Proposição herética altamente revolucionária - não obstante estar muito mais próxima da caridade cristã do que a intransigência do preceito canônico católico oficial - pois abria espaço para os réprobos (condenados ao inferno) de no futuro se beneficiarem da misericórdia divina - relativizando destarte o medo da condenação eterna.
Em 1770, na Devassa realiza-da pelo incansável Visitador Padre Policarpo de Abreu Nogueira, na Freguesia de Nossa Senhora do Bonsucesso de Pindamonhangaba, saiu denunciado Pedro Antonio "negociante de negros e animais", acusado de também defender que "Jesus não deixou o 6° Manda-mento como pecado entre os sol-teiros, e só o deixou por São Pe-dro instar .:"(9)certamente ale-gando ter sido o Príncipe dos Apóstolos o único dos Discípulos a ter a sogra citada no Evangelho. Pelo visto, a defesa de que a "fornicação simples não era pecado" foi das proposições heré-ticas mais constantes não só na Pe-nínsula Ibérica, como também na América Latina, inclusive em São Paulo Colnia,(10) vertente hete-rodoxa reforçada pela generaliza-da e até hoje cantada opinião em verso e prosa de que "não existe pe-cado debaixo do Equador".
No ano seguinte, o mesmo sa-cerdote comunica a Lisboa que na visita à Freguesia de São João de Atibaia saiu denunciado o sitiante Francisco Camargo Pimentel, por repetir o mesmo impropério: que "o 6° Mandamento não era peca-do"(11). Até na remota Itapeva, "si-tuada junto à estrada real na vizi-nhança do Rio Verde, pequena vila com matriz dedicada a Sant'Ana,(12) havia leigos que ou-savam interpretar a Doutrina à sua moda, em flagrante conflito com o ensinamento de Roma.
Em 1777 chega aos Estaus do Tribunal do Rossio a informação inculpando mais um paulista: constava que Manoel José, vendedor de fazendas secas, defendia que "no inferno não se padeciam tormen-tos e os padres diziam isto para aterrorizar, pois (o castigo) era so-mente o não ver Deus"(13). Opi-nião absolutamente contrária aos dogmas da Sagrada Teologia que afirmava "sofrerem os réprobos no grande lago da ira de Deus, duas sortes de castigos: a pena do da-no, que consiste na privação da vis-ta de Deus e a pena do sentido, o tormento de arder num fogo que nunca se extinguirá!"(14)
Ainda mais um paulista tem seu nome registrado nos volumo-sos e temidos Cadernos do Promo-tor da Inquisição de Lisboa, incul-pado de proferir heresias relativas à moral sexual. Manoel Xavier Lacerda, "morador em Jacuí, Capita-nia de São Paulo" , vivia aman-cebado com uma cunhada, e defendia que por esta causa não devia ser excomungado conforme determinavam as Constituições Pri-meiras do Arcebispado da Bahia (§969 e seguintes), alegando ha-ver muitos homens amancebados com suas comadres, cunhadas e parentes, "e se Deus não houves-se de dar o céu aos homens por causa do 6° Mandamento, que guardasse o céu para palheiro, acrescentando que o 6° Manda-mento não era pecado pois se o fosse ninguém se salvaria", defen-dendo ainda abertamente a heré-tica proposição de que "a fornica-ção simples não era pecado".(15)Êta paulistaiada petulante!
Feiticeiros, Curadores e Mandi-ngueiros
Entre 1762-1781 chegam à In-quisição lisboeta sete denúncias contra moradores da Capitania de São Paulo envolvidos com a práti-ca de diferentes tipos de sortilé-gios, sendo três curadores, três fei-ticeiros e um portador de uma "bolsa de mandinga" , três dos quais viviam em Guarapiranga, e os restantes em Santos, Cotia, Mogi das Cruzes e Sorocaba. Todos os protagonistas destes episódios, em sua maior parte são descendentes de africanos, e suas história permaneceram até hoje ignoradas na poeira dos arquivos inquisitoriais, e é com alegria que os resgatamos à luz do dia, forne-cendo aos estudiosos das religiões afro-brasileiras informações inédi-tas sobre práticas divinatórias e ce-rimônias cabalísticas praticadas em São Paulo na segunda metade dos Setecentos.
As chamadas bolsas de man-dinga ou patuás eram amuletos apreciadíssimos pelos colonos afro-luso-ameríndio-brasileiros, tendo levado às barras do Tribunal da Fé mais de uma dezena de escravos e liber-tos não só do Brasil, como também de Portugal(16), sendo este o motivo da realização de um Sumário de cul-pas na Visita Pastoral de Soroca-ba no ano do Senhor de 1767. "Vi-la considerável e florescente, é ornada com uma igreja paroquial da invocação de Nossa Senhora da Ponte, um recolhimento de mu-lheres, um Hospício de Bentos, uma Ermida de Santo Antônio e outra dedicada a Nossa Senhora do Rosário, cuja construção os pre-tos continuam".(17) Famosa por sua feira de muares, em Sorocaba se concentrava buliçosa população de tropeiros, vaqueiros, tangedores e viandantes, os principais aficio-nados desta devoção a um tempo sincrética e sacrílega, à qual se atribuía o poder de "fechar o cor-po" contra todo tipo de perigos fí-sicos ou malefícios diabólicos.
O acusado era conhecido tão- somente pelo nome de João, Mu-lato Escravo. Ao ser agarrado pela autoridade eclesiástica, aberto o patuá que trazia no pescoço, den-tro se encontrou um pedaço de sangüíneo (espécie de guardanapo utilizado na missa para limpar as derradeiras gotas do sangue de Cristo conservadas no cálice), um pedacito de corporal (toalhinha destinada a abrigar partículas do corpo de Cristo caídas no altar), além da folha de um missal com oração e gravura de Jesus, uma hóstia consagrada - que segundo declarou o réu, fora-lhe ofertada por um sacristão - "e muitas ou-tras coisas, como raízes, dentes de cobra, etc. que por não serem da Igreja, foram queimadas".(18) Diz o documento que "o sangüíneo ain-da cheirava vinho" sugerindo ter sido recentemente surrupiado da sacristia. Ao ser inquirido por que razão trazia a dita hóstia consagra-da, respondeu o mulato João que "era para comungar na hora de sua morte", inspiração piedosa porém sacrílega, posto que até poucos anos, apenas os sacer-dotes tinham o privilégio de tocar no preciosíssimo corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Só um estu-do comparativo dos outros réus do Brasil, que por trazerem semelhan-tes bolsas de mandinga foram pre-sos e processados nos cárceres se-cretos da Inquisição, poderá esclarecer porque este escravo de Sorocaba teve melhor sorte, sen-do arquivado este Sumário sem que os Inquisidores determinassem seu aprisionamento. Aliás, salvo er-ro, nenhum dos residentes em São Paulo acusados pela prática de fei-tiçaria chegou de fato a ser encar-cerado pela Inquisição, nem mes-mo a perigosa bruxa Inácia, negra crioula, escrava de Manoel Perei-ra Camargo, residente em Cotia. infamada de ter morto a muitas pessoas graças a seus medonhos feitiços.(19)
Sobre alguns destes feiticeiros e cu-radores dispomos de interessantes informações sobre o modus operandi no exercício de suas artes divina-tórias. Vários deles viviam sob o jugo da escravidão, como o negro José, escravo de Francisco Andra-de, morador na Freguesia de San-tana de Mogi das Cruzes, contra o qual é feito um Sumário onde 19 testemunhas fornecem interessan-tes detalhes etnográficos sobre suas mistificações(20).É acusado de "curar feitiços no Distrito a fora, adivinhando quem os botou, usando de uma panela (de barro) nova, onde colocava caveiras de caranguejos (e de outros animais) com água, e na boca mete um dedal de prata dizendo certas palavras, ten-do um frango preto ao lado da panela." Uma testemunha dá outras informações: disse que as caveiras usadas por José eram de pássaros (corvos) e que durante o "traba-lho"; falava palavras em sua língua nativa, desenterrando com uma fa-ca, dentro ou fora das casas, assim como pelas encruzilhadas das es-tradas, misteriosas botijas ou sa-quinhos repletos de ossos de sa-po, penas, vidros, cabelos, pimenta, agulhas e outros espan-tosos ingredientes. Tinha também o costume de tirar água da dita pa-nela e aspergir com a boca pela so-leira da porta, ou esguichando-a no chão quando abria os ditos bu-racos para desenterrar feitiços - mantendo sempre o galo preto a seu lado, do qual, certa feita, tirou três penas do rabo, com elas fazendo uma cruz quando no ato de descobrir malefícios. A um doente recomendou o uso de defumadores. Tudo leva a crer que o es-cravo José gozava de boa consideração por onde passava, tanto que na época em que morou na Freguesia da Sé, na cidade de São Paulo, freqüentou ilustres re-sidências, tendo tratado de Dona Antonia Pinta do Rego, e em Mo-gi a Maria de Cândia Siqueira, além de outros brancos e a incon-táveis negros.
Enquanto este negro de Mogi das Cruzes era expert em desen-terrar feitiços, na vila de Santos ou-tro escravo é denunciado exatamente pelo contrário: por ser autor de terríveis malefícios. Chamava-se Felipe - e encontrava-se preso por ordem do Capitão do Forte da Praça de Santos, sob a acusação de ter feito um feitiço tão forte e peçonhento contra seu senhor, o qual "só tem calma mediante os exorcismos da Igreja": Provavelmente pressionado por violenta tortura, o preto Feli-pe confessou ter praticado os seguintes malefícios: primeiro mistu-rou na comida de seu amo um bocadinho de pó de defunto e dente de jacaré, provocando-lhe fortes dores nas cadeiras e barriga. Em seguida, enterrou debaixo da porta de sua casa um pássaro mirrado, dois ovos de galinha e uma raiz grossa de butá (planta da família das Menispermáceas, também chamada "falso paratudo", raiz medicinal preta por fora e amarela por dentro). Disse ter feito este feitiço "para seu senhor ir mirrando, e que quando os ovos apodrecessem, também lhe apodreceriam as entranhas e que a raiz do butá era para ele conservar a vida e não morrer logo". O negro era o Cão! Disse mais, que fora o preto crioulo Manoel, então trabalhando nas minas de Mato Grosso, quem lhe ensinara tais artes cabalísticas, o qual, certa vez, chamando pelo Diabo à meia noite, em vez de apenas um, apareceram dois Demônios, entrando um no corpo do escravo Felipe e o outro se apossando de seu senhor. Fantasioso, este feiticeiro de Santos ga-rantia que, enquanto esteve preso, uma cobra se encarregava de guar-dar os feitiços que enterrara na ca-sa de seu amo. Ao ser-lhe arran-cada do pescoço sua bolsa de mandinga, assim foram identifica-dos seus ingredientes: um dedo de criança(21), lasquinhas de unha, osso de defunto, pó de sapo, raiz de mil-homens (planta da família das Aristolóquias, usada como contraveneno nas picadas de co-bra), unicórnio (chifre de rinoce-ronte). Irônico, o Capitão do For-te da Praça de Santos conclui assim sua denúncia: "Se o escra-vo Felipe é feiticeiro, que o Santo Ofício conclua..."(22)
Encerramos esta primeira coleção das histórias dos moradores de São Paulo denunciados ao Tribu-nal da Inquisição pelo crime de fei-tiçaria com três acusações registra-das na vila de Guarapiranga (município de Ribeirão Bonito, zo-na do Paranapiacaba), no ano de Senhor de 1772. Diferentemente de todos os demais casos, aqui o delatado é um branco, Bento de Lima Prestello, sobrenome de ori-gem italiana, e seu denunciante, Isidoro da Silva Costa, residente na Capela de São Miguel, no mesmo distrito. Disse que este curador vie-ra das minas do Sabará, da fregue-sia de Santo Antônio da Roça Grande, e assim praticava seus ri-tuais heterodoxos: "punha na mão do enfermo umas raízes contra be-ninos ("doença que não apresenta caráter grave"), para saber se tinha ou não feitiços, e se a mão tremia, tinha; benzia então o enfermo di-zendo: Jesus, Nome de Jesus, Deus te fez, Deus te curou, Deus acanhe a quem te acanhou. Deus te tire o mal que no teu corpo entrou: o ar de lua, ar de figueira, ar de pe-reira, ar de perlezia, ar de corrup-to, ar de inveja, ar de feitiçaria, ar de enchaque, ar de maleitas e mais coisas que não estou ciente pelos poderes da Virgem Maria, São Pe-dro e São Paulo, que o corpo de Fulano fique são e salvo como na hora em que foi nascido, assim como Nosso Senhor sarou das cinco chagas. Padre-Nosso, Ave Maria". Além desta reza forte, o curador Prestello é acusado de exorcizar os endemoniados - privilégio exclu-sivo dos sacerdotes detentores da autorização episcopal - "fazendo adivinhações com uma grande bol-sa, batendo os pés no chão como fazem os exorcistas, e com uma cruz de contas fazia cruz na cabe-ça da pessoa enferma que tinha es-pírito maligno, dizendo umas pa-lavras incompreensíveis e também batia com a bolsa na parte dolori-da do enfermo".(23)
Nesta mesma ocasião são de-nunciados como feiticeiros mais dois moradores da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Guarapiranga: o escravo identifica-do como João, Preto Mina, useiro em receitar remédios cabalísticos, o qual, ao ser procurado por um tal Pedro Teixeira, respondeu que "não podia curar sem falar com sua gente" - provavelmente referindo-se a seus ancestrais de-sencarnados, aos quais os nativos da Costa da Mina atribuem pode-res preternaturais. Embora africa-no nato, este João de Guarapiran-ga já incluía em seus rituais inovações apropriadas da tradição luso-brasileira: "fez uma cruz no chão e no seu meio pôs uma pe-dra de sal e pingava-lhe uma pin-ga de cachaça, dando logo asso-bios na tal cruz, e saudava a todos com Louvado Seja Cristo! e como não entendiam os tais assobios, ex-plicava o preto de boca".
Além de João Mina, outro fei-ticeiro de Guarapiranga é citado na mesma denúncia: José Gonçalves, preto forro, o qual "fazia adivinha-ções por diferente modo - com uma boceta (caixinha de guardar rapé) dava assobios e depois apli-cava os remédios ensinados por sua gente"(24).
Por mais de dois séculos esta dezena de feiticeiros, libertinos, hereges e curadores ficaram esque-cidos na poeira dos arquivos. Ao resgatar-lhes a memória, duas fo-ram nossas intenções: estimular outros pesquisadores a rever cui-dadosamente os manuscritos ori-ginais que aqui nos contentamos em resumir, além de indicar sua lo-calização arquivística, facilitando o trabalho de futuros estudiosos. Nossa inten-ção mais profunda é chamar a atenção de todos, pesquisadores e leitores, para o perigo representa-do pela hegemonia dos monstros sagrados - sejam os Minotauros, Chibungos, Inquisições e espectros quejandos, que à moda dos mistificadores, quiromantes e prestidi-gitadores do além, pretendem ser os donos de uma verdade revela-da que no mais das vezes não pas-sa de simplória alienação quando não condenável charlatanismo. Concluo a primeira parte deste ensaio fazendo minhas a pala-vras luminares do Dr. Antônio Gonçalves Gomide, que em 1814 publicou um corajoso opúsculo desmascarando a falsa santidade de uma beata mineira, sua contempo-rânea: "Talvez me argúam dizen-do: que te importa a piedosa frau-de em que vivem satisfeitos os crédulos? Privá-los desta ilusão não é tirar-lhes um entretenimento que os consola? Respondo: A verdade é o principal elemento da vida so-cial. A impostura aos ignorantes equivale à opressão da força sobre os mais fracos. O filósofo deve achar e promulgar a verdade.(25)
NOTAS
Agradeço ao CNPq a dotação que me permitiu realizar pesquisas na Torre do Tombo. Este artigo faz parte de um estudo mais amplo intitulado "Moralidade e Sexualidade no Brasil Colonial" e uma versão modificada foi originalmente publicada no D.0. Leitura, SP, 10 (120), maio de 1992.
1. Siqueira, Sônia. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial, São Paulo, Editora Ática, 1978.
2. Wiznitzer, Arnold. Os judeus no Brasil Colonial, São Paulo, Editora Pioneira, 1966:147
3. Salvador José G. Os Cristãos-Novos: Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro. São Paulo, 1976; Cristãos-Novos, Jesuítas e Inquisição. São Paulo, Livra-ria Editora Pioneira, 1969. Novinsky Ani-ta W. Inquisição. Inventários de bens confiscados a Cristãos-Novos. Lisboa, Im-prensa Nacional. 1977.
4. Moraes e Silva, Antonio. Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa, Empreza Literária Fluminense, s/d.
5. Aires de Casal, Manuel. Corogratia Brasílica. (1817) São Paulo, Livraria Edi-tora Itatiaia/USP 1976: 114
6. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante ANTT), Inquisição de Lisboa, Caderno do Nefando n° 19, fl. 411, 20-9-1741
7. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Araritaguaba, 25-9-1765.
8. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 126, Taubaté, 8.6.1762.
9. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Pindamonhanga-ba, 10-12-1770.
10. Vainfas, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1989.
11. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Atibaia, 18-2-1771.
12. Aires de Casal, Op. Cit. 1976: 114
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14. Guillois, Abade Ambrósio. Explica-ção Histórica, Dogmática, Moral, Litúrgica e Canônica do Catecismo. Porto, Li-vraria Internacional, 1878: 426.
15. ANTT Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor n° 131, Jacuí, 27-7-1781.
16. Mott, Luiz. ' A Vida Mística e Eróti-ca do Escravo José Francisco Pereira. "Tempo Brasileiro, (92-93), Jan/Jun. 1988: 85-104. Souza, Laura de Mello. O Diabo na Terra de Santa Cruz. São Paulo, Com-panhia das Letras, 1988.
17. Aires de Casal, Op. Cit. 1976: 114
18. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Sorocaba, 1767
19. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 130, Denúncia do Co-missário Salvador Camargo Lima, 1781.
20. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 126, Mogi das Cruzes, fl. 32, 1762
21. Mott, Luiz. "Dedo de Anjo, Osso de Defunto: Os restos mortais na feitiçaria afro--luso-brasileira. "D.O. Leitura São Paulo, 8 (90) novembro 1989: 1-3.
22. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Santos, 7-10-1776.
23. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Guarapiranga, 10-5-1772.
24. ANTT Inquisição de Lisboa, Cader-no do Promotor n° 129, Guarapiranga, 10-5-1772.
25. Gomide, Antonio Gonçalves. Impug-nação analítica ao exame feito em uma rapariga que julgaram santa na capela da Piedade, Comarca de Sabará. Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1814



"Torturas e Heresias na Casa da Torre: Bahia, Séc. XVIII(1)"

Autor: Luiz Mott

Foi na Torre do Tombo - o maior arquivo português, manancial inesgotável de manuscritos relativos ao Brasil Colonial - onde encontramos um dos documentos mais chocantes de todo nossa história: são 12 folhas manuscritas por um ilustre desconhecido, José Ferreira Vivas, que nos finais do século XVIII envia da Bahia de Todos os Santos ao Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa uma denúncia com 47 itens contra o homem mais rico do Brasil, Garcia D'Ávila Pereira Aragão , herdeiro e proprietário da famigerada Casa da Torre.
Das 47 denúncias, 26 itens referem-se a torturas e castigos crudelíssimos aplicados pelo Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão contra seus escravos - cujos requintes de crueldade chocam mesmo ao mais empedernido coração! - sendo 21 os itens que incriminam o proprietário da Casa da Torre em blasfêmias e irreverência contra a religião católica - a única permitida na época em toda cristandade.
Garcia D'Ávila Pereira Aragão nasceu em Santo Tomás do Iguape aos 4 de outubro de 1735, na fazenda de seu avô Garcia D'Ávila Pereira. Casou-se duas vezes, primeiro com D. Teresa Cavalcanti de Albuquerque, filha do alcaide-mor da Bahia, e após sua morte, realizou segundas núpcias com D. Josefa Maria da Conceição e Lima, descendente da tradicional família Rocha Pitta. Um seu contemporâneo informava que sua segunda mulher jamais se arriscou a fazer vida conjugal na Casa da Torre com o 4o Garcia D'Ávila, preferindo ficar mais sossegada, morando na residência paterna.
Segundo avaliação do historiador da Casa da Torre, Pedro Calmon, "sem nenhuma dúvida, foi o mais rico dos filhos do Brasil, inteligente e arrebatado: o último varão da estirpe dos Garcia Dávila..." Foi agraciado com a comenda de Cavaleiro da Ordem de Cristo e Mestre de Campo dos Auxiliares da Torre (1753) e descrito por seus contemporâneos como "cavaleiro selvagem na forma exterior".
A divulgação deste documento da Torre do Tombo justifica-se por três razoes principais: primeiro por revelar o lado mais cruel e sanguinário da escravidão, sendo este rol de atrocidades, certamente, o relato mais violento e pungente que se tem notícia na história do Brasil, quiçá em toda história do escravismo no Novo Mundo.
A segunda justificativa de se divulgar este manuscrito é revelar as blasfêmias e práticas anti-religiosos perpetradas por um destacado membro da elite colonial, comprovando os limites reais da autoridade aterradora do Tribunal da Inquisição, que apesar de poder confiscar os bens, açoitar e condenar à fogueira os hereges e heterodoxos, não chegava a inibir palavras e ações francamente hostis à Santa Religião. Saiba o leitor que malgrado a gravidade destas denúncias, o Santo Ofício nada fez contra este mau cristão, agindo com a mesma indiferença, igualmente, em relação a certos blasfemos despossuídos de riquezas.
A terceira razão que justifica a divulgação deste documento neste livro tem a ver com o que ele diretamente nos informa, e de primeira mão, sobre a própria Casa da Torre: ao descrever as torturas e sacrilégios ali praticados por seu terratenente, o denunciante fornece, aqui e acolá, dados concretos sobre as instalações, espaços, utensílios e personagens que compunham o dia a dia e se movimentavam dentro desta portentosa propriedade senhorial do Recôncavo Baiano.
Sugiro que o leitor preste atenção não apenas nos atos cruéis e irreverentes praticados por Garcia D'Ávila Pereira Aragão , mas também atente para os aspectos materiais e sociais que servem de pano de fundo a este espantoso relatório. À guisa de contribuição para se reconstituir tal paisagem, no final do manuscrito enumero e esclareço alguns elementos citados no documento que permitem-nos visualizar o interior, as redes de relação e o quotidiano da famigerada Casa da Torre.
DOCUMENTO : Denúncia ao Santo Ofício contra Garcia Dávila Pereira Aragão

"Senhor Reverendo Vigário Antônio Gonçalves Fraga
Meu Senhor: a Vossa Mercê deponho, como Comissário do Santo Ofí-cio, as heresias ditas e feitas pelo Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão, contra Deus Nosso Senhor e os Santos, desencar-regando nesta parte a minha consciência com V. Mercê, como assim man-dam e ordenam os Editais do Santo Ofício, e constam dos itens seguintes:
Heresias que faz aos seus escravos
Item 1. Que a um escravo crioulo chamado Hipólito, de idade de 16 anos, pouco mais ou menos, o mandou montar em um cavalo de pau, e mandou lhe amarrassem em cada pé uma arroba de bronze, ficando com os pés altos, e o mandou deitar sobre o cavalo, mandando dois negros açoitá-lo, que o fizeram por sua ordem rigorosamente, desde pela manhã 8 horas até as 11 horas do dia; que depois disto feito, o mandou amarrar com uma corda pelos pulsos dos braços juntos, e passada a outra parte da corda ao mourão da casa, o foram guindando até o porem com os pés altos fora do chão, braça e meia pouco mais ou menos; e mandou passar-lhe uma ponta da corda nos testículos ou grãos, bem apertada e na outra ponta Ihe mandou pendurar meia arroba de bronze, ficando no ar para lhes estar puxando os grãos para baixo; que o pobre miserável dava gritos que metia compaixão, e ao mesmo tempo, lhe mandou pôr uns anjinhos nos dedos dos pés ajuntando-os, que tal foi o aperto, que lhe fez o dito Mestre de Campo, que lhe ia cortando os dedos, e esteve com estes martírios obra de duas horas, que por Deus ser servido não morreu desesperado o arrenegado.
Item 2. Que a uma escrava mestiça chamada Lauriana de idade de 25 anos, pouco mais ou menos, a castigava o dito Mestre de Campo muitas vezes, dando-lhe com uma palmatória de pau pela cara e queixadas do rosto, levantando a mão com a maior força que podia, e andava esta con-tinuamente com o rosto inchado, procedido de semelhante castigo.
Item 3. Que querendo noutra ocasião castigar a mesma dita escrava acima, mandava buscar uma turquesa grande de sapateiro, e a mandava chegar a si, trepando-se ele, o dito Mestre de Campo em lugar mais alto, e metendo a turquesa aberta na cabeça da dita escrava, tudo quanto apa-nhava de cabelos fixando a turquesa, lhes arrancava de uma vez.
Item 4. Que em outra ocasião mandou pôr na dita escrava Lauriana um ferro no pescoço, com duas vergas levantadas, em alto, que teriam mais de palmo e meio, e em cada uma delas uma campainha e uma corrente muito grossa no pé, passando-lhe duas voltas pela cintura, indo a ponta dela atar às campainhas, e mais uns grilhões nos pés, como (se estivesse peada) man-dando-a assim cortar capim para os cavalos dali a meia légua, e às vezes mais longe, sem lhe dar de comer e sempre morta a fome; e por não trazer em um dia de domingo com brevidade e pressa o capim, a mandou açoitar numa cama de vento por dois escravos, Bastião e Domingos, cada um com suas correias açoitando a um tempo, que cansados estes, mandou continuar os açoites por outros dois, Narciso e Geraldo, e cansados estes mandou continuar pelos primeiros Bastião e Domingos, assistindo ele, dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão a todo este maldito suplício e martírio que teria no chão meio pote de sangue. E depois de tudo isto feito na dita cama de vento, amarrado cada pé e cada braço no ar por sua ponta de corda, com todos os ferros ditos acima, mandando aos ditos escravos a desatassem todos juntos a um tempo de pancadas, para cair acima assim com os peitos no chão do sobrado e levar grande pancada, como assim o fizeram; e depois a mandou meter numa prisão com ordem passada de duzentos açoites cada dia, mandando-lhe levar cada dia uma menina, parva quantia para comer, não consentindo-lhe desse água para beber; e no outro dia lhe mandou dar outra parva quantia de água, sem comer, tendo esta uns anjinhos nos dedos das mãos com todos os ferros já declarados e para comer e beber aquela parva quantia, que lhe davam, se lhe punha encima de um banquinho para comer como cachorro ou outro animal, com a boca no prato, lambendo ou apanhando com os beiços o que podia, por ter as mãos e dedos presos, sem consentir mais lhe fizessem fogo (de noite) e nem lhe dessem quanto o pedisse, para senão agüentar do frio muito que ali fazia no lugar onde tinha sido presa. E depois de tudo isto feito, a mandou amarrar pelos dois braços, cada qual com uma corda, e o guindando em alto no oitão da casa, com os braços abertos, como crucifi-cado, ficando-lhe os pés a uma braça em alto do chão, ele mandou no mesmo tempo amarrar uma arroba de bronze em cada pé, para estarem puxando mais para baixo, com os mais ferros já declarados, enrolados pela denturada (sic) corrente de guindar pedras ou caixas de açúcar donde a teve nesta forma desde o meio dia até às quatro ou cinco da tarde, urinando-se por si, com semelhante castigo, tolhendo-se-lhe também a fala, por lhe estar estirando os nervos da garganta, como ela assim o disse saindo deste martí-rio mais morta que viva. E mandou chamar Cosme Pereira de Carvalho e Luiza Mendes, pardas já de idade, para verem a obra de caridade que es-tava fazendo àquela pobre cristã, e quando elas lhe pediam abreviasse já aquele castigo ou martírio, dizia que aquilo não era nada. E se não a tivesse comprado um pardo chamado Bernardo da Rocha, e a levasse para o Ser-tão, teria morrido mártir nas mãos daquele Turco.
Item 5. Que a um escravo chamado Caetano, mestiço de idade 30 anos, pouco mais ou menos, pelo apanhar tocando uma rabeca em sua casa não estando ele ali, o mandou pegar e amarrar em uma cama-de-vento, ficando--lhe o corpo no ar, com os braços e pernas abertas atadas com argolas com suas cordas, e o começaram a açoitar desde as dez horas do dia até às quatro horas para as cinco da tarde, por dois açoitadores. E cansados estes, entra-ram outros dois, tudo a um tempo, como lhe dirá o mesmo açoitado, e em todo este tempo dos açoites, desmaiava o pobre mestiço, ficando sem fala em cujo tempo lhes estava o dito Mestre de Campo botando limão com sal nos olhos, com uma pena de galinha, por sua própria mão, que despertando o dito mestiço com o limão e sal nos olhos, mandava continuar com os açoi-tes, botando-lhe ao mesmo tempo cocos de água fria pelas nádegas, como se fosse um bárbaro com tão horrendo castigo. E depois de açoitado nesta forma, que já não tinha carne nas nádegas, o mandou pôr com uma argola pelo pescoço, ficando em pé não direito, porém quase encurvado, e assim o teve até às dez horas da noite, que por vários peditórios o aliviou da argola, indo dormir em uma corrente, sem querer que ninguém o curasse. E no outro dia de manhã, foi para uma argola, onde esteve todo o dia nu no sol sem comer, nem beber, até às nove horas da noite, que metia compaixão! E no cabo de dois dias, ninguém podia parar junto dele com o infecto que vinha das feridas, que eram tantos os bichos de moscas que parecia que estavam em riba de um defunto já cheio de corrupção. Escapou (vivo) pelo muito trato que tiveram dele suas tias Teresa e Clemência, tam-bém elas testemunhas.
Item 6. Que querendo o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão ir pescar por seu divertimento, mandou pôr uma escrava chamada Páscoa a uma lagoa ou rio apanhar isca para a dita pescaria. E por não chegar ao tempo que ele queria, veio para casa e mandou vir uma escada, mandando-a pôr de alto a baixo, e mandou amarrar a dita crioula na escada com a cabeça para baixo, pés para cima, mandando-lhe meter a cabeça por dentro do derradeiro degrau da escada, ficando-lhe a cabeça ou a testa tocando no chão, e o degrau bem em riba do toutiço (nuca), ficando com a cabeça arqueada, que quase morre afogada ou sufocada, com o de-grau que lhe ficava no cangote e dois negros açoitando-a, que por milagre de Deus não morreu afogada ou arrenegada, com tão desastrado e horrendo castigo.
Item 7. Que um menino de seis ou oito anos, chamado Manoel, filho de uma escrava chamada Rosaura, o mandou virar várias vezes, com o devido respeito, com a via de baixo para cima mandando o arreganhasse bem com as duas mãos nas nádegas, estando com a cabeça no chão e a bunda para o ar, estando neste mesmo tempo o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão com uma vela acesa nas mãos, e quando ajuntava bem cera derretida, a deitava e pingava dentro da via (ânus) do dito menino que com a dor do fogo, dava aquele pulo para o ar, acompanhado com um grito pela dor que padecia dos ditos pingos de cera quente derretida na via, sendo esta bastante. E disto rindo-se o dito Mestre de Campo, ao mesmo tempo com aquele regalo e alegria de queimar aquele cristão, o mandava que se fosse embora, dizendo: Ides para dentro de casa.
Item 8. Que uma menina de três ou quatro anos, pouco mais ou menos, chamada Leandra, filha de uma sua escrava chamada Maria Pai, a chamou e mandou se abaixasse e pondo a carinha da pobre menina declinada sobre um fogareiro de brasas acesas, e ele o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão pondo-lhe uma mão na cabeça, para que a menina com o calor não retirasse o rosto do fogo, em cujo tempo começou a abanar o fogareiro e a outra mão ocupada na cabeça da menina, sem ela a poder levantar, estando já a dita menina com o rosto defronte das brasas tão vermelhas e sapecado com as mesmas brasas, ao tempo que veio passando uma sua mulata, ama de sua casa, chamada Custódia, que vendo aquela heresia, lhe disse, gritando: Que é isso meu senhor, quer queimar a menina, não faça isso meu senhor! Então a largou, rindo-se como cousa que não fazia nada.
Item 9. Que a mesma menina Leandra, em outra ocasião, tirando-se um tacho de doce do fogo, estando o dito Mestre de Campo seu senhor assistindo a feitura do dito doce, chegando naquela ocasião a dita menina lhe perguntou o Mestre de Campo se queria doce, que dizendo a menina que sim, encheu uma colher de prata do doce, tirando-o do tacho, e estando ainda quase fervendo, derramou a colher do doce de repente na palma da mão da dita menina, e virando-se ela a mão no mesmo tempo para derramar o doce da mão por não poder aguardar pela estar queimando, logo investiu o dito Mestre de Campo, atracando-Ihe no pulsinho do braço, tendo a mão (de modo) que ela não o derramasse fora, ameaçando-a com gritos que o comesse e o lambesse e senão, que a mandava açoitar, e a miserável menina assim o fez, estando com a mão preza pelo pulso do bracinho, e saiu desta heresia com a mão e língua queimadas.
Item 10. Que manda as suas escravas deitarem-se com saias levantadas, e ao mesmo tempo, lhes vai botando ventosas com algodão e fogo nas suas partes pudendas, com a sua própria mão, dizendo: para chuparem as umidades - heresia tão ignorada entre a cristandade.
Item 11. Que a uma crioula chamada Teresa, sua escrava, casada, quan-do a apanhava dormindo, inda com a saia, antes de ser horas de dormir, ou de se deitar, levantando-lhe a saia, lhe metia uma luz acesa pelas suas partes venéreas, e toda a queimava, fazendo-lhe isto várias vezes, em ausência de seu marido, e quando todos os meninos e grandes se deitam neste caso, é à primeira e segunda cantada do galo e assim que o dia vai rompendo, que o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão se põe de pé, assim já hão de estar todos desta casa, grandes e pequenos, e o que não se levantou, logo vai à cama onde ele ou ela dorme, e com um chicote de açoitar cavalos, que já leva na mão, o põe miserável, e assim andam todos tresnoitados.
Item 12. Que apanhando o dito Mestre de Campo umas suas escravas dançando, depois de as mandar açoitar rigorosissimamente, Ihes mandou bo-tar uns papagaios de algodão com azeite nas partes venéreas, largando-lhe fogo, dizendo que era para lhes tirar o mesmo fogo, que todas as queimou.
Item13. Que uma sua escrava mestiça, chamada Rosaura, e duas mu-latas mais, Francisca e Maximiana, as mandou despir nuas, em uma sala, e ajuntando na mão dois rabos de um peixe chamado arraia, com eles as açoitou rigorosissimamente por todo o corpo, sem reservação de lugar al-gum, ficando estes corpos alanhados (golpeados) e cutilados, já sem pele, mandando depois arrancar os cabelos do pente (púbis) umas às outras, es-tando ele o dito Mestre de Campo no mesmo tempo com a sua própria mão barreando os ditos púbis com cinza quente para se arrancarem melhor, e quanto mais gritavam as pobres das dores que padeciam, mais com força mandava que arrancassem, lavrando ao mesmo tempo os malditos rabos de arraia. E depois de bem barbeadas nesta forma, mandou a cada uma se lhe desse vinte dúzias de açoites, e depois destas surras dadas, as mandou meter em correntes, e no dia seguinte mandou continuar com a mesma oficina dos açoites, e ficaram as miseráveis tão escandalizadas (maltratadas) do dito púbis e partes venéreas, que lhes inchou e pelaram da cinza, ficando o de-pois tudo em feridas e carnes vivas.
Item 14. No dia seguinte, sexta-feira da Paixão, mandou açoitar a dita Rosaura acima, e seu filho chamado Manuel, o qual já declarei no capítulo dos pingos de cera derretida, ambos rigorosamente; e a dita Rosaura, depois de açoitada, lhe mandou pôr uma grossa corrente no pescoço e uns grilhões nos pés, e depois disto feito, mandou chamar a um Alexandre José, rabequista, e metendo-lhe uma rabeca na mão, mandou que tocasse, estando com muita alegria no dito tempo e dia.
Item 15. Que costuma açoitar seus escravos maiormente no dia de Sexta Feira da Paixão, estando toda a semana muitas vezes sem açoitar. E no dia de Sexta Feira, anda em casa como endemoniado, ora dizendo pela casa passeando entre as suas escravas: A quem açoitarei eu hoje? ora dizendo: Ando com vontade de ver sangue de gente açoitado. E assim andam todos de casa assustados, vendo que é padecente. E naquela lida em que anda das nove horas por diante, manda pegar naquela ou naquele que lhe parece, e os manda açoitar por dois escravos, tudo a um tempo, até cansarem. E cansa-dos estes, manda continuar par outros dois, ora postos em escadas cruci-ficados, ora em camas de vento no ar, ora como lhe parece, sempre com martírios e heresias, deixando no chão poças de sangue, regalando-se de ver os cachorros comerem e beberem o sangue destas miseráveis criaturas.
Item 16. No mesmo dia anda em casa com um pauzinho na mão do ta-manho de um palmo, pouco mais ou menos, com uma ponta, chega-se a qualquer escrava, põem-se em pé junto dela, e começa a meter-lhe o pau-zinho pelo corpo, com quem quer furar: aqui mete, ali mete, e há de estar aquela escrava quieta suportando aquela tirania, ainda que lhe doa, e se ela buliu, como coisa que teve cócegas, ou recuou para trás, (diz): Pega! vai açoitar! e lá vai aquela pobre mártir. Muitas vezes busca para mandar açoi-tar no dia da Paixão.
Item 17. Que em outro ano, na Semana Santa, na Quarta feira de Tre-vas, açoitou e palmateou dois negros rigorosissimamente, Ambrósio e Narciso, e na Quinta Feira de Endoenças, tornou com a mesma diligência dos açoites de manhã aos mesmos. E de noite mandou açoitar a uma mulata, Francisca do Carmo, rigorosissimamente. E na Sexta Feira da Paixão, fez os mesmos castigos a outros escravos, como eles e elas assim o poderão confessar, e à forma como os castigou, e todos os anos na Semana Santa faz estes cas-tigos: para ele é o melhor prato, sem ficar Semana Santa alguma, há muitos anos, que não castigue naqueles dias, mormente na Sexta Feira da Paixão, com tanta alegria e vontade, que parece uma onça morta à fome em riba de uma carniça. E já se chegou a ele uma moça forra chamada Leandra de Freitas, achando-se nessa casa e suplício neste dia, pedindo ao dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão pelo amor de Deus não açoitasse naquele dia da Paixão do Senhor, respondeu o dito Mestre de Campo: Eu hoje, neste dia é que açoito! mandando continuar com os açoites mais rigorosamente.
Item 18. Que açoitando no mesmo dia o dito Mestre de Campo, em outro ano, a dois mulatos, Geraldo e Maximiana, rigorosamente, que disse a Ma-nuel Francisco dos Santos, seu foreiro e compadre se tinha regalado em tal dia de ver cachorros comer e beber sangue de gente açoitada, e foi certo que corria sangue dos dois cristão pela terra, que ensopava a mesma terra, pare-cendo um pote de água que se tinha derramado como assim dirão os mesmos escravos.
.Item 19. Que haverá cinco anos, que prendeu, depois de bem açoitadas, uma mulata escrava chamada Francisca do Carmo, e outra, chamada Ro-saura, cada uma com sua corrente, com a coleira pelo pescoço, e a outra ponta pregada no sobrado, onde estiveram presas nesta forma, sem dali se moverem de dia, nem de noite, para parte alguma, e haverá um ano, que as despregou do sobrado onde estavam presas, porém andando soltas ser-vindo a casa com as mesmas correntes no pescoço pela coleira com mais comprimento, enrolada pela cintura, e só se tiram estas correntes do pes-coço e cintura destas miseráveis no dia que se vão confessar pela desobriga da quaresma de ano em ano, porém vindo da confissão, logo para já lhe tornam a pôr as correntes na mesma forma dita acima, e há cinco para seis anos que andam estas pobres cativas com estas jibóias atracadas em si pela cintura e pescoço, sem delas poderem ter alívio algum, e já andam com o pescoço cheio de calos, feridos das coleiras, que continuamente trazem em si, assim dormindo, comendo, e assim doentes em uma cama, e assim toda a vida sem refrigério algum. Nascido este martírio, sem outra razão, ou fun-damento algum, senão pelas querer sujeitar com ele a ofensa de Deus, e quando não querem, indo da mesma sorte, lavra a novena de bacalhau, a novena de palmatoadas, com três dúzias de manhã, e três dúzias à tarde, e no outro dia, o mesmo, e assim vai continuando este castigo ou novena não ficando de fora os anjinhos, até elas se sujeitarem com ele a ofensa de Deus, contra a sua vontade. E esta devoção do Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão é qual nas suas escravas da porta a dentro e ainda porta a fora, com as mesmas suas afilhadas de batismo, como sucede e suce-deu com Ana, sua afilhada, filha de Martina já defunta, que quando ela não quer, a sujeita com vários açoites, anjinhos e martírios.
Item 20. Que esta Francisca do Carmo dita acima, atracada com a dita corrente, mandou ele, o dito Mestre de Campo que fosse ela dar de comer todos os dias a uma onça que tinha presa em uma corrente em um cepo, numa casinha evitando que os mulatos machos não dessem mais de comer à dita onça, só sim a dita mulata, por ser a raiva que dela teve, por evitar com ele dar ofensa a Deus: e isto o fazia com tamanho ânimo, oferecendo-se a Deus, gritando à onça que nunca a ofendeu. Porém, como Deus Nosso Se-nhor é pai de Misericórdia e Piedade, sabia o sentido com que o dito Mestre de Campo mandava aquela miserável botar de comer à onça, para ela a comer. Foi servido amanhecer um dia a dita onça morta, para alívio do susto com que aquela miserável escrava vivia, pois estava vendo o dia que a onça faria dela carniça ou prato.
Item 21. Que estando lendo livros de noite, deitado em uma rede, manda as suas escravas ou meninos pegar em uma luz, e ali está a pobre mulher ou o pobre menino em pé com a candeia na mão, desde as sete ou oito horas da noite, até meia noite, pouco mais ou menos, sem dali se mover, sempre com o cuidado de atiçar a candeia, e se daquele excesso de estar em pé até aquelas horas lhe sobrevem alguma coisa na cabeça, talvez de fracos, por não terem comido naquele dia, por andarem sempre mortos a fome ou outra qualquer moléstia ou dor, logo manda no mesmo instante açoitá-lo rigoro-sissimamente, ainda que seja meia noite, amotinando e assustando a casa, dizendo ele nela ou nele menino velhacaria, sendo estes candeeiros, veladores e castiçais, mas tudo é estar esperando ou buscando ocasiões de abusar aqueles pobres cristãos.
Item 22. Que a um menino de quatro anos, chamado Arquileu, filho de uma sua escrava, chamada Prudência, vigiando uma figueira os passarinhos não comessem os figos dela, e por achar um figo picado dos ditos passari-nhos, o açoitou com um chicote de açoitar cavalos, pondo-o nu, rigorosis-simamente pelas costas, pernas e todo o corpo, e principalmente pela bar-riga já com feridas tão idôneas (hediondas?) e feias, que senão fora uma sua mulata chamada Custódia, ama de sua casa, que desesperadamente veio de dentro, pegando no menino e o meteu entre as pernas, cobrindo-o com a saia, dizendo: também quero morrer mate-me a mim também, que depois de morta escusarei de ver tantas heresias que se fazem nesta casa sem temor de Deus e de sua Mãe Santíssima. Então sossegou o Mestre de Campo da-quela maldita fúria e barbaridade com que estava martirizando aquele po-bre cristão Anjinho, e senão, matava-o debaixo daquele chicote, porque já lhe tinha comido toda a pele do corpo, principalmente da barriga, que es-tava já tudo em carne viva. E ela olhando e vendo em seu filho aquela heresia e barbaridade, como estaria aquele coração atormentado e ago-niada! E assim se observa o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão com todos os meninos de sua casa, que vê-los das náde-gas metem compaixão. E se a mãe do filho que apanha mostra tristeza e sentimento, também vai ao suplício. E se o filho mostra tristeza e senti-mento da mãe que apanha, também vai ao suplício. E se o parente, que apanha, mostra tristeza, também apanha: hão de ver e presenciar, e andar alegres. Enfim, não digo nada ao muito que tinha que dizer.
Item 23. Que a um menino de oito ou nove anos, chamado Jerônimo, depois de o esbordoar com uma tábua, deixando-o quase morto, por não reservar lugar por onde lhe dava, o mandou açoitar rigorosamente que me-tia compaixão, mandando depois por-lhe uns grilhões nos pés e uma argola de ferro no pescoço, com hastes levantadas para Ihe por campainhas, e mandando furar-lhe os rejeitos dos pés e pelos buracos enfiar uma corda e pendurá-lo ficando com os pés para cima e a cabeça para baixo. E depois disto, o açoitou novamente rigorosissimamente que o deixou quase morto.
Item 24. Que a uma mulata chamada Maria do Rosário estando açoi-tando-a encima de um banco, supõe-se três ou quatro horas em açoites, que já não havia santo nem santa nem Paixão de Jesus Cristo, nem a Virgem Nossa Senhora, por quem ela chamava que a valesse, e por este respeito, mais acendidamente mandava que puxassem pelos açoites, gastando todo o tempo acima declarado que quase esteve a dita mulata blasfemando, pe-dindo ao diabo que a acudisse e a valesse, que era tanto o sangue que corria em regatos. E depois disto, a mandou logo no outro dia seguinte para uma sua malhada do tamanho quase do terreiro desta cidade, ou metade dele, mandando capinasse a dita mulata com as mãos, onde esteve todo dia ao sol sem comer no dito serviço, ficando por todos os dias arrancando vassou-rinhas e ervinhas e outras imundícies mais de ervas que se criam entre o capim, e sem comer, à chuva e ao sol, sem dali se arredar, comendo somente o que de salto apanhava das mãos das outras parceiras e parentes que por caridade lhe davam.
Item 25. Que a um escravo chamado Antônio Magro, contratando o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão com ele dar-lhe o seu valor, passar-Ihe carta de alforria, e depois que Ihe comeu a esta conta umas vacas e uns capados, galinhas e leitões, à conta do dito valor, a conta que lhe passou foi uma noite à senzala do dito negro, acompanhado com seis escravos, e mandando-o pegar uns pelas mãos, outros pelos pés, e ali o amarraram, tapando-lhe os olhos e a boca, derrubando-o no chão, lhe mandou botar à força uma ajuda (clister) de pimentas malaguetas com pito de preto e metendo ele o canudo a força, que tudo já levava pronto para o dito bene-fício ou carta de alforria, mandando o largassem depois disto. Que esteve à morte, sendo de idade de setenta para oitenta anos.
Item 26. Que a uma novilha prenhe de uma pobre parda, chamada Ana Maria, dizem ser irmã bastarda do dito Mestre de Campo, por vir ao seu curral junto com outro gado seu, por assim virem do pasto incorporados, a mandou pegar e amarrar, ficando-lhe as armas bem encostadas e arro-chadas em um mourão, e com fachos de fogo que mandou fazer, e mandou queimar toda pela barriga, peitos e partes venéreas, olhos e principalmente todo empenho da parte de baixo, que era de uma dor de coração, ver as heresias que mandou fazer àquele pobre animal, estando preso sem dali se poder escapulir, que ainda os Turcos não fariam semelhante barbaridade, só sim os Judeus. E não durou esta pobre novilha quinze dias, perdendo-a sua dona, que é o que ele queria.
Escravos da casa, que todos sabem:
José Pereira - Francisco Gago - Amaro - Geraldo - José - outro José - Bastião, sua mulher Teresa - Maria do Rosário - Páscoa - Maria crioula - Maria Pais - Custódia - Ana - outra Ana Marinha, sua afi-lhada - Rosaura - Francisca do Carmo - Manoel mulato - outro Ma-noel, dos pingos de cera derretida quente - José Mais - e outros mais escravos que todos sabem destas heresias.
Heresias ditas e feitas contra Deus Nosso Senhor e os Santos
Item 27. Que dizendo ao José Ferreira Vivas ao Mestre de Campo que Cristo Nosso Senhor havia padecido gravíssimos tormentos desde a hora de sua prisão até no final da hora de sua morte, crucificado em sua carne e que só um poder divino feito homem podia tolerar tão graves tormentos por nosso amor, para nos resgatar do cativeiro do Demônio, respondeu o dito Mestre de Campo, por sua própria boca estas formais palavras: "Que diz, homem? É verdade que morreu um Apóstolo, porém não se sabe quem era". Mostrando neste dito, pronunciado por sua própria boca, ser suspeito na fé, em não crer que Deus Nosso Senhor se fizera homem, para satisfazer por nossos pecados, sofrendo a pena de morte em seu corpo santificado, o que não pu-dera fazer se não se fizera homem.
Item 28. Que disse o dito Mestre de Campo ao Capitão Antônio Pamplona Vasconcelos: que se fora senhor de vinte Igrejas, fizera nessas vinte estrebarias de cava-los.
Item 29. Que tem o dito Mestre de Campo várias imagens de Santos e santas na sua casa, todos estercados de pombos, morcegos e outras imundícies mais, com pouco asseio e reverencia.
Item 30. Que queria o dito Mestre de Campo queimar um caixão com os ornamentos da Santíssima Madre de Deus, e por assim lho impedir um irmão, ou Manuel Baptista ou Florêncio Vieira, mandou botar o caixão da parte de fora da sua capela, para tudo o tempo consumir.
Item 31. Que disse o dito Mestre de Campo, que tomara já que o diabo lhe derrubasse a sua capela ou uma tempestade a botasse no chão e que quebrasse todos os santos e santas que nela estão.
Item 32. Que diz o dito Mestre de Campo que há de tomar todos os santos e san-tas da dita sua capela, e os há de meter dentro de um caixão e depois lhes há de mandar largar fogo, para os queimar a todos, e que a Capela há de fazer dela, (com o devido respeito), um chiqueiro de porcos, achando melhor patrimônio para a sua alma fazer da Igreja sagrada casa de cevados, do que dá-la ao Reverendo Vi-gário para fazer nela suas funções paroquiais e obséquio dos Santos.
Item 33. Que me disse o dito Mestre de Campo que se morrer nos caminhos do Sertão, que o enterrassem no mesmo lugar, sem cruz alguma, e que de nenhum modo o levassem a alguma igreja, nem mesmo a lugar sagrado, e que antes queria ser sambenitado por judeu, do que ser Mestre de Campo.
Item 34. Que disse o dito Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão ao Capitão Luís de Varjão Brandão, que quando escrevia algumas cartas aos homens por sua própria letra, que cuidava muito nelas em judiar dos homens.
Item 35. Que disse o dito Mestre de Campo a José Francisco Vivas, que ele era judeu, e que quando conversava com os homens, cuidava muito na sua conversa em judiar deles.
Item 36. Que dando uma moça forra, chamada Benedita, da mesma casa, a um mulato, escravo de José Pires de Carvalho, uma Bula para nela lhe por o seu nome e pondo o dito mulato a bula aberta por cima de uma mesa, indo primeiro a certo serviço em casa, em cujo tempo passando acaso por ali o dito Mestre de Campo, e vendo a Bula em riba da mesa e o tinteiro junto, pegou na pena tirando tinta, pôs ou escreveu no lugar onde se põem os nomes (com o devido respeito) estas palavras MERDA - CAGALHÃO. E vindo depois o dito mulato, que pe-gando na Bula para lhe por o nome, e vendo aquela heresia, a mostrou a seu Senhor José Pires de Carvalho, que pedindo este uma tesoura, dizendo: Jesus, Jesus e cortou as ditas palavras. Testemunhas que assim sucedeu: o padre Brás Pereira Soares, a mesma Benedita dona da Bula, sua mãe Luzia Mendes, sua irmã Rosa Maria, Maria do Nascimento, Agostinho Dias, o mesmo José Pires seu cunhado, e outras muitas pessoas.
Item 37. Que tomou o dito Mestre de Campo uma imagem de um santo ou santa bento, que estava na sacristia da sua capela, e o meteu dentro de um cesto ve-lho, sem mais toalha por baixo, nem pano algum, mais que pondo a imagem dentro do cesto e cobrindo-a com uma folha de bananeira, assim a mandou levar à sua avó, Dona Ignácia de Araújo Pereira, em Jacuípe, três léguas distante de sua casa, que quando viram o cesto, entenderam seriam bananas, que posto o cesto no chão e vendo que era a imagem coberta por desprezo com folha de banana, logo Padre Brás Pereira Soares, Vedor e Procurador da dita Dona Ignácia, mandou com muita pressa retirar o cesto para dentro da casa, dizendo fôra bom não es-tar ali naquela ocasião pessoa de fora, por não presenciar aquela heresia.
Item 38. Que duas imagens que lhe ficaram, mandou ao sacristão Florêncio Vieira, na mesma ocasião, fizesse um buraco no chão na mesma sacristia, e os enterrasse, dizendo o dito sacristão que não fazia tal, ainda que o matasse; sempre mandou o dito Mestre de Campo que fizesse o buraco, que ele os enterraria, e fazendo o sacristão o buraco, ele os metera dentro, pegando um pelas pernas, outro pela cabecinha, e os lançava dentro, botando-lhe terra, (suponho) com os pés, ou se mandou botar, e socar. E se isto é assim ainda hão de estar enterrados, se a terra os não desfez na mesma sacristia, haverá nove ou dez anos, e quem pode depor esta mesma verdade, é a mesmo sacristão Florêncio Vieira, com que se passou esta heresia, o qual se acha morando com Dona Ignácia de Araújo Pereira, avó do dito Mestre de Campo.
Item 39. Que este caso, dizem, que o contou uma parda chamada Antônia Barbo-sa, casada com um Amaro dos Banhos, mora hoje esta em companhia de um Manoel Francisco dos Santos, morador no sítio dos Campos, na mesma Torre. E diz ela contando esta história a uma crioula chamada Clemência, forra, casada com João da Casta, preto forro, (pessoa de crédito, ainda que preto), por se mandar inquirir segunda vez da dita Antônia Barbosa, e disse ela por sua própria boca que morando em Monte Gordo, Freguesia de Santo Amaro do Ipitanga, passara da Torre este dito Sacristão Florêncio Vieira, por sua casa ao meio dia, onde entrou para descansar o sol, e que estando ele sentado lhe perguntara a dita Antônia Barbosa se ele já havia feito a sua capelinha, e que ele respondera que não queria fazer mais a capelinha, por vir fugindo daquele Judeu, que era o Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão , por ter enterrado dois santos na sacristia, contando a história que ele mandara o cesto coberto com as folhas de bananas e que os dois que haviam ficado lhe mandara fizesse um buraco e os enterrara, e pondo ele dúvida em tal fazer dizendo antes queria mor-rer, sempre o dito Mestre de Campo lhe mandou ou obrigou fizesse o buraco, que os enterraria e assim o fez, pegando um pelas perninhas, outro pela cabecinha, e os lançara dentro do buraco, lançando-lhe terra com os pés e este dito sacristão o poderá depor melhor, e com mais circunstâncias e a dita Antônia Barbosa é digna de se lhe dar crédito e não tinha fundamento para levantar semelhante balela, e falou nesta estória conversando com esta Clemência em tem-po de trovões, dizendo que tinha medo nesse tempo quando fazia trovões, não caísse aquela casa por ter feito o dono dela aquela heresia, e por aqui foi que se des-cobriu a que estava encoberto tantos anos.
Item 40. Que o dito Mestre de Campo, andando uns devotos correndo a Santa Via Sacra em uma Sexta Feira da Paixão, começou de sua casa, em lugar reservado, a apedrejar com pedras os ditos devotos, andando estes neste santo exercício.
Item 41. Que em outra ocasião, vindo o dito Mestre de Campo de cavalo encontrando com outros devotos, correndo a Via Sacra, meteu o cavalo entre eles, es-palhando uns aqui, outros por ali, que tudo espalhou e perturbou, a ali com medo dele se acabou o dito exercício.
Item 42. Que uma véspera de São João, ajudou uma Missa que dizia o Reverendo Padre Silvestre Carneiro de Sá, seu Capelão, em uma capela, e no deitar do vinho no último cibório, deixou o dito padre na galheta quanto lhe bastasse para cele-bração do Santo Sacrifício da Missa no dia seguinte de S. João para os seus apli-cados a ouvirem com sermão que naquele dia pretendia fazer. Que o dito Mestre de
Campo alcançando isto, foi maliciosamente à galheta e bebeu o vinho que nela ha-via, para o dia seguinte. E dando disto fé o sacristão Florêncio Vieira, lhe disse: Mas se meu Senhor bebe o vinho, amanhã o Padre não diz missa. Respondeu o dito Mestre de Campo: Amanhã a despenseira que dê vinho para a Missa, e de madru-gada partiu para o Monte Gordo, distância de três léguas, passando ordem à despenseira não desse vinho quando lho pedissem para a Missa, e se ela o desse, e se dissesse Missa com o seu vinho, que ela lho pagaria, e como ele não estava em casa, não se lhe pediu nem se disse a Missa, que é o que queria, pois com a mesma malícia bebeu o vinho da galheta. E chegando o Padre no dia seguinte de São João com todo o povo daquele lugar para ouvirem a Missa e sermão, e querendo o Padre vestir-se a horas para a dita celebração, foi o sacristão pedir o vinho à despenseira, a qual respondeu não havia vinho, confessando a ordem que Ihe deu seu Senhor, de que fez presente ao Padre. Isto foi sabido já perto das onze horas, ficando o povo amotinado contra o Padre, que se não tinha vinho lhes podia fazer saber cedo, para cada qual buscar Missa a tempo e horas, para não ficarem sem Missa no dito dia, que não houve desculpa do miserável Padre para ter admitida a sua verdade e tragédia do dito Mestre de Campo, com o dito povo e seus aplicados, e daqui procedeu correr o dito Mestre de Campo com o pobre Padre da dita sua capela e terra, por este ter com ele uma satisfação, pelo respeito do dito acima.
Item 43. Que tem o dito Mestre de Campo uma cabocla feita de barro, do ta-manho de dois ou três palmos, feita do tempo antigo dos seus antepassados, com a boca aberta e feia, com a língua de fora, e a pôs em uma cova que tem em uma parede como oratório, com uma vela acesa em um castiçal nos pés da dita figura, como se estivesse aos pés de algum santo, e ali a esteve adorando como se fosse alguma imagem de algum santo, o tempo que lhe pareceu, até tirar o castiçal com a vela, o que presenciou o Capitão do Mato Alexandre José.
Item 44. Que passando por varias moradores no mesmo lugar da Torre, de cavalo, com uma sua mulata nas ancas do cavalo, chamada Custodia, perguntou a um de seus moradores: Como se chamava uma coisa que tem dentro as partículas ou o Sacramen-to? Responderam que chamava-se Custódia. Disse então o Mestre de Campo Garcia D'Ávila Pereira Aragão : Pois eu aqui levo a Custódia no cu do meu cavalo. Deste fato, poder-se-á lembrar Luzia Mendes ou sua filha, Dona Rosa Maria, Maria do Nascimento, Agostinho Dias, que eram todas moradores nesse mesmo lugar, e outras pessoas mais.
Item 45. Que indo certos mascates à presença do dito Mestre de Campo com várias imagens pequenas de verônicas, cruzes, crucifixos, e outras mais, pegou o dito Mestre de Campo em um feitio de um Menino Jesus e tendo-o nas mãos, o deixou cair no chão que o mesmo mascate o levantou, e havendo quem lhe perguntasse depois por que deixou cair das mãos o Menino Jesus, respondeu o dito Mestre de Campo: Ele não era Menino Jesus porque se deixou cair e não se deteve no ar. Esta tam-bém a presenciou o mesmo Capitão Alexandre José.
Item 46. Que tomou a Cabocla de barro acima dita, e a meteu em uma cama de colchão entre dois lençóis mui bem lavados, e mandou chamar o Padre Antônio Félix para vir a uma confissão, que chegando o dito Padre, mandou confessasse aquela enferma, e foi descobrindo o lençol, amostrando a dita Caboclinha, dizen-do: Aqui está a enferma confessa. E vendo o dito Padre aquela heresia, foi viran-do para trás, dizendo: Boas asneiras são estas, que com riso disfarçou o dito Mestre de Campo esta tratada como cousa que não tinha feito nada. Esta também a presenciou o Capitão Alexandre José.
Item 47. Passando em sua casa o dito Mestre de Campo, por uma casinha ou camarinha de cima, e tendo uma imagem no chão (suponho) de Senhora Santana, naquele passar pela imagem pela pressa com que ia, pegou o timão na santa em alguma coisa que ficasse pegado, virou com uma fúria e raiva para trás, e deu tal coice na santa, que atirou com ela deitada no chão, e assim a deixou, seguindo para diante ao intento com que ia, sem fazer mais caso de a levantar e a reve-renciar.
TESTEMUNHAS REFERIDAS:
Luiz Mendes - Cosma Pereira de Carvalho - Maria do Nascimento e seu marido João Baptista - Ana sua filha - Agostinha Dias - Rosa Maria de Jesus - Filha de Luzia Mendes - Benedita Vieira, sua irmã - Clemêncio mestiço - Teresa Mestiça e sua irmã - Mariana Vieira - Sua filha Ana Maria - Ana Maria passageira da passagem da Pojuca - Antônio Ta-vares, sua mulher Marceliana - José Fogaça - Florência sua mulher -Margarida, irmã da dita Florência - Teresa de tal, mãe de Manuel, pai de Rosa Maria de Jesus - Mulher do filho de Luiz Alvares - Felipa Pereira -Manuel Alexandre seu neto - Margarida Ferreira - Maria da Cruz -Joana de tal, no sítio da Pinguela - Maria Aranha, sua filha - Leandra de Freitas - Isabel de tal, sua mãe Leonor, moradores na Praia da Torre - -Francisco Tavares - Luís da Costa, sua mulher Felícia de tal - o Padre Brás Pereira Soares.
Este fez: JOSÉ FERREIRA VIVAS"
(Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo n° 16.687)

A fim de auxiliar na reconstituição do interior, dos espaços, objetos, móveis, pessoas, eventos, redes de relação e do quotidiano da famigerada Casa da Torre da Bahia, enumero e esclareço algumas informações etnográficas referidas neste documento que permitem-nos visualizar parte do "recheio" desta propriedade e aspectos cruciais da vida privada de seus proprietários, escravos e agregados nos meados do Século XVIII:

I. Espaços da propriedade rural
· capela
· curral
· "malhada do tamanho quase do terreiro desta cidade ou metade dele". Malhada: "lugar de uma plantação de capim de corte"
· pasto
· sacristia
· senzala
II. Cômodos e detalhes arquitetônicos
· casinha ou camarinha de cima
· "cova em uma parede como oratório": nicho
· prisão
III. Móveis
· banco,
· banquinho
· "cama de colchão entre dois lençóis mui bem lavados"
· cama de vento
IV. Objetos do lar e utensílios
· caixão
· cesto
· cocos de água: "vasilha feita do endocarpo do coco-da-baía ou folha-de-flandres, no qual se embebe, perto da boca, um cabo torneado e serve para tirar a água dos potes"
· colher de prata
· livros
· mesa
· pena de escrever
· rede
· tacho de doce
· tesoura
· tinteiro
V. Iluminação e combustão:
· candeeiros
· candeia
· castiçais
· fogareiro de brasas
· vela
· veladores: "suporte vertical de madeira, que assenta em uma base ou pé e termina, no alto, por um disco onde se põe um candeeiro ou uma vela"
VI. Imagens
· "Caboclinha: uma cabocla feita de barro, do ta-manho de dois ou três palmos, feita do tempo antigo dos seus antepassados, com a boca aberta e feia, com a língua de fora"
· Várias imagens de santos e santas
VII. Ferramentas e instrumentos
· corrente de guindar pedras ou caixas de açúcar
· escada de madeira
· turquesa grande de sapateiro
· uma arroba de bronze
VIII. Alimentos e plantas
· figos
· pimentas malaguetas
· pito de preto
· doce
· vinho
IX. Instrumentos de tortura
· Anjinhos: "anéis ferro com que se prendiam e apertavam os dedos de escravos e criminosos"
· argolas de ferro: para prender a cabeça ou membros dos escravos, com suas cordas
· cavalo de pau: espécie de cavalete onde se descansavam as selas e arreios das cavalgaduras, utilizado como uma espécie de "pau de arara" para chicotear escravos
· chicote de açoitar cavalos: usado para flagelar escravos
· "ferro de pescoço, com duas vergas levantadas, em alto, que teriam mais de palmo e meio, e em cada uma delas uma campainha e uma corrente muito grossa no pé, passando duas voltas pela cintura do escravo, indo a ponta dela atar às campainhas"
· grilhões: para prender os pés
· jibóias: corrente que se atracava na cintura e pescoço do escravo
· palmatória de pau
· "pauzinho do ta-manho de um palmo, pouco mais ou menos, com uma ponta"" usado para pinicar as escravas
· rabo do peixe arraia: usado como chicote para açoitar escravos
· turquesa grande de sapateiro: usada como objeto de tortura para arrancar mechas de cabelo dos escravos
· papagaio: "pequena pasta de algodão que se coloca ao pé Oou em outra parte do corpo) de quem dorme e à qual, por brincadeira, [ou como tortura] se ateia fogo"
X. Medicina
· "ajuda": clister para lavagem intestinal
· ventosas com algodão para tirar umidade
XI. Celebrações
· dança de escravas
· desobriga da quaresma
· missa de São João na capela da casa da torre
· procissão da Via Sacra na sexta feira da paixão
XII. Personagens e tipos sociais
· ama de casa
· afilhadas de batismo
· rabequista
· capitão do mato
· despenseira
· irmã bastarda
· foreiro
· compadre
· mascates que vendem imagens, verônicas, cruzes, crucifixos
· padre
· capelão
· sacristão
XIII. Animais
· cachorros
· capados
· cavalo
· galinhas
· leitões
· novilha
· "onça presa em uma corrente em um cepo, numa casinha"
· vacas

NOTAS
1.Parte desse texto encontra-se publicado in Mott, Luiz: "Terror na Casa da Torre: Tortura de escravos na Bahia Colonial", in J.J.Reis (org.), Escravidão e Invenção d Liberdade. S.Paulo, Editora Brasiliense, 1988, p.18-32
Bibliografia:
Calmon, Pedro: História da Casa da Torre. Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1984 (1a Edição, 1940)
Mott, Luiz: "Terror na Casa da Torre: Tortura de escravos na Bahia Colonial", in J.J.Reis (org.), Escravidão e Invenção da Liberdade. S.Paulo, Editora Brasiliense, 1988, p.18-32